sábado, 25 de dezembro de 2021

NATAL 2021 - DE NOVO O CONVÍVIO CERCEADO

Este é o 2º Natal que vivemos de convívio restrito e resumido ao resguardo do lar de cada um por via desta terrível pandemia Covid 19 que teima em nos incomodar e que, alastrada por todo o globo terrestre, traz doença, sofrimento e morte.

Foi mais uma quadra natalícia em que cada um viveu no recato de suas casas e onde naturalmente eu e minha família mais chegada nos incluímos. 

Longe vão os tempos das grandes reuniões e convívios familiares quando nos juntávamos em vasto número com avós, pais, filhos e netos, num fraterno e amigo ambiente…


Hoje, novamente e pelo 2º ano, aqui ficamos por casa resumidos a 3 elementos e se isso já foi triste, mais triste ainda se nos apresentam os tempos futuros dado que não se vê, nem de perto, nem de longe, o término desta malfadada epidemia.

Ainda assim e como é de tradição fizemos os doces, os fritos, o bacalhau na Consoada e o Cabrito no Almoço de Natal e, também e para finalizar, como é nosso hábito, ao jantar degustamos a Açorda, dos restos do pão, das couves e do bacalhau. 

Esta Açorda, cuja foto do tachinho de hoje ao jantar aí fica, é um hábito que vem desde os tempos de minha sogra na Beira Alta e cai sempre muitíssimo bem. Saborosa e desenjoativa a Açorda de pão, couves e bacalhau, é sempre uma maravilha!

E pronto, agora resta esperar pelo fim destes tempos complicados e demasiado difíceis que atravessamos mas que temo demorem muito, muito tempo a ver o seu término. 

A não ser, segundo o meu modestíssimo ponto de vista, que os grandes dirigentes mundiais se consciencializem que o fim da pandemia só será possível acontecer, em tempo ainda que demorado, quando se tornar obrigatória a nível mundial a vacinação nos países ditos modernos e, não olhando a despesas, se vacine todo o continente africano, de norte a sul, fazendo igual tratamento nos países pobres da América Latina e do Oriente.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

17 DE DEZEMBRO DE 1969 - ÚNICO E INOLVIDÁVEL!


Penso que os homens, tal como as nações que, afinal, são constituídas por homens, durante as suas vidas e a sua história, vivem e muito bem comemorando datas marcantes da sua existência mas, em contrapartida, olvidam outras ou, se quisermos melhor, deixam esquecidas no tempo datas porventura não tão importantes mas ainda assim bem relevantes de suas vidas.

E, assim, se na realidade do caso das nações temos por exemplo o esquecimento a que foi votada em Portugal a data de 25 de Novembro de 1975 que, depois da desordem e bagunça no percurso verificado entre o 25 de Abril de 1974 e essa data fez recolher os militares aos quartéis, evitando uma provável guerra civil e colocou o país nos carris da democracia, também eu, pessoalmente, embora sempre todos os anos lembre quão importante foi na minha vida o dia já tão distante de 17 de Dezembro de 1969, a verdade é que não o comemoro minimamente que seja.


Nessa muito importante data, vindo de Angola, após 26 meses de dura e temível guerra que, somados a mais ano e meio de serviço militar obrigatório antes da mobilização dá um total de quase 4 anos roubados à mocidade de um pacato e inofensivo rapaz de vinte anos de idade, desembarquei no Cais da Rocha, em Lisboa e vi-me livre para todo o sempre das fardas, da disciplina e ordem militares, dos temores da guerra e das mil privações resultante duma agressiva e mortífera guerra subversiva em terras e ambientes estranhos e hostis, quando não fatais.

Ver-me livre de tudo aquilo, já o escrevi mais vezes, constituiu para mim o dia mais feliz da minha vida! E já casei, fui pai e avô!… Tudo datas muitíssimo importantes e felizes mas, como a daquele dia, em que pus pé em terra e vi-me livre daquele imenso inferno, não conseguiram ser mais.

E, se este facto já seria sobejamente importante para assim considerar esse desembarque e esse dia, quis as circunstâncias da vida que ao desembarque ainda se associasse ocorrência igualmente da maior relevância na minha vida e que foi o dia do conhecimento pessoal daquela que viria a ser a minha fiel e dedicada esposa, a mãe de meus filhos e a companheira para os restantes dias da minha vida!

Julgo que é uma história interessante, curiosa, bonita mesmo e bem verdadeira que aqui deixo, narrada para o fim dos tempos:
Na guerra, no distante e inóspito leste angolano, a milhares de kms de Portugal e quase sem comunicações (as cartas demoravam vários dias e até semanas a chegar) e após o término de um namoro na então chamada Metrópole, este jovem rapazinho pensou em arranjar uma “Madrinha de Guerra”. (Assim eram tituladas as moças que ficavam em Portugal e que pelos mais diversos motivos aceitavam trocar correspondência com os militares em combate nas diversas frentes de guerra africana.)

Em conversa com um soldado foi-me dado o endereço de uma jovem da sua aldeia que, segundo ele, tinha feito alguns estudos secundários e seria suposto estar indicada para comigo travarmos correspondência e debatermos ideias.

Chamava-se Rosa e, como ele e a grande maioria dos soldados que me acompanhavam, vivia numa pequena aldeia no nosso Minho. Trocamos meia dúzia de cartas mas, coitada, a pequena era muito limitada em português tendo por isso alguma dificuldade de expressão e, por via disso, tinha muito poucas ideias e argumentação… “No domingo fui a Braga à festa, que estava muito animada”; “No sábado fui à feira em Barcelos, que estava muito boa”. E abordar ou discutir para além disso: zero.

Nem me recordo como e quem terminou as correspondências… Não obstante a simpatia da moça, não dava...

É então que, no decorrer de uma das diversas conversas de camarata em grupo de furriéis, com brincadeiras e piadas que toda a rapaziada nova sempre usava, eu pergunto a um deles, totalmente na brincadeira, se não tinha nenhuma irmã que eventualmente quisesse ser minha “madrinha de guerra” e tive como resposta:
- Por acaso até tenho.
- E estudou, claro…
- Sim. Tem o 5º ano.
- Ó pá, escreve-lhe a perguntar se me podes dar o seu endereço, pode ser?

E foi a partir daí que, desde a 1ª troca de correspondência, tudo foi acontecendo muito naturalmente. Extensas cartas de parte a parte; muitos debates de ideias; muitos pontos em comum; trocas de fotografias; a aproximação sentimental em aumento progressivo e… o namoro iniciou-se. Naturalmente ele surgiu...

Decorrido ano e meio faltava então o conhecimento pessoal que aconteceu no dia do desembarque e essa situação também regista um episódio bem curioso: No barco, em alto-mar, recebi um telegrama da também ansiosa namorada que me informava: ”Meu dístico será balão.” e, eu, ia todo feliz pensando que seria fácil localizá-la.

Bem me enganei!... Eram às centenas os balões exibidos pelos milhares de pessoas que aguardavam no terraço do edifício e no piso térreo do cais o desembarque dos militares. Brancos, amarelos, vermelhos, azuis, verdes, etc todos de igual formato redondo tradicional dos balões e, aí, este ansioso rapaz ficou às aranhas sem saber onde encontrar a sua amada…

Resolvi então procurar o dístico previamente acordado com meu pai com a palavra “Chouto”, nome da minha aldeia e que indicava a localização da família e amigos e, é bem reparando que vejo, ali pertinho deles, um balão diferente de todos os outros… Não era redondo, não. Era comprido, verde e em formato de… lagarta!…

Só podia ser a minha apaixonada, não tinha dúvidas e não mais tirei os olhos daquela lagarta e daquela imagem que ainda hoje guardo bem viva na memória! (Pena sinto que, talvez como consequência das emoções na hora sentidas, não tenha clicado bem as fotos que aqui deixo mas que, mesmo assim, apesar de tão má qualidade, merecem ficar para a minha história de vida.)

E, depois, foi o que se imagina,,, A felicidade imensa e inenarrável de, livre pisar terra firme e ao fim de mais de 2 anos de sofrimentos, incertezas, receios e medos, abraçar e beijar os que me eram queridos e os amigos que marcaram presença no cais, foi inimaginável!

E, assim, pelos factos narrados, dá para avaliar a enorme importância na minha vida do dia 17 de Dezembro de 1969.

Uma data que, reconheço, deveria celebrar condignamente todos os anos mas que, vá lá saber porquê, ficou esquecida no tempo, sendo verdade que anualmente bem a recordo ainda que não a festeje publicamente. Porquê? Nem sei explicar.
Mas foi um dia único! Um dia inolvidável! Um dia que jamais se repetirá!

quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

A V "RECAUCHUTAGEM" E OS AVANÇOS DA MEDICINA

Nestas minhas crónicas ao longo dos tempos, relativamente aos tratamentos ao doente fígado de que tenho beneficiado, tenho vindo aqui a salientar o quanto verifico os avanços da ciência e, neste caso da medicina, de tal forma me tenho admirado com os métodos e eficiência desses modernos procedimentos.

Foi assim com a Laparoscopia e as Quimioembolizações e foi agora com a Alcoolização, método que, como os outros me admirou sobremaneira.

Foi seu executante um jovem médico de 33 anos, cujo nome não divulgo por motivos óbvios, muito dialogante e simpático e que, antes e na hora, teve a amabilidade de elucidar-me sobre o método e a forma com iria ser processado.


Assim, enquanto a Quimioembolização consiste em depositar no tumor a químio necessária e que é levada até lá por um finíssimo cateter introduzido na virilha na artéria adequada, a Alcoolização é feita com mais precisão com uma fina e comprida agulha entrada na pele abaixo das costelas e que vai direitinha ao tumor onde deposita álcool para a sua queima e consequente eliminação.

Informou-me antes do procedimento o jovem doutor que só sentiria uma leve dor na picada da agulha e sua introdução levando ali a necessária anestesia local e que, depois, para a deposição do álcool, porque então aí uma acão bem mais dolorosa, “pomo-lo a dormir”, no dizer das suas amáveis palavras.

E foi exactamente o que aconteceu: no procedimento mais doloroso fui sedado por alguns minutos, nada senti e, quando o efeito da sedação se foi, da mesma forma nada senti, de tal forma que, passadas 24 horas, saía do hospital pelo meu pé e retornaria à minha residência. 

Considero um espanto estes métodos de tratamento de maleitas tão graves e penso que se os nossas antepassados, que já cá não estão, vissem a evolução da ciência e da medicina, custar-lhes-ia acreditar com tal foi possível em tão curto espaço de tempo.

Um doente entrar num hospital para sofrer a eliminação de um tumor no fígado, num procedimento que não levou uma hora, ter 22 horas de repouso e sair, pelo seu pé, sem dores, 46 horas passadas de transpor a porta de entrada, acho que é motivo de pasmo, de regozijo e agradecimento muito grande aos homens e mulheres – eles sim, doutores, como tenho escrito – que queimaram horas e horas, dias e noites de estudos e experiências para que outros homens vivam cada vez com mais saúde, melhor bem-estar e, sobretudo, mais anos de vida.

Bem-hajam!

Bem-hajam os senhores doutores que nos curam e nos salvam!


NOTA FINAL – Ao contrário de alguns que dizem mal do SNS, este escriba, como já o fez anteriormente, continua a não ter razão de queixa (e pelo que vê e ouve à sua volta nos internamentos, outros assim também pensam) e, dos médicos à enfermagem (que se farta de trabalhar!) e até aos Auxiliares todos são incansáveis, atenciosos e educados! Na foto uma simpática Auxiliar de Enfermagem que me acompanhou até à porta de saída do Hospital Curry Cabral (Lisboa) onde fui, mais uma vez bem, muito bem cuidado.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

A V "RECAUCHUTAGEM" ESTÁ AÍ!


 E, com esta, que terá início com o internamento amanhã e a Alcoolização no dia seguinte (15), serão 5 as intervenções nesta doentinha “pecinha das iscas” que teima em fazer crescer “brincos” que os senhores doutores vão, com a ajuda da ciência, por enquanto eliminando.

Primeiro 1 Laparoscopia, depois 3 Quimioembolizações e, desta vez, será a Alcoolização.

Com, umas menos, outras mais dolorosas, lá vou percorrendo o difícil caminho que, no dizer do meu médico assistente, assim continuará em bem enquanto houver tratamento porque, quando algo surgir em que falte a cura…

Acaba-se a “licença” e, era uma vez…

Mas, ainda que disso convencido e preparado, há que andar em frente, utilizando a ciência e o saber dos homens para, como bastas vezes se dizia na minha juventude na minha terra, “acordar todos os dias com os dedos dos pés a mexer...”


quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

VIVER (MUITO) POBRE

Penso que vermos uma imagem, como a que retirei da net, de alguém desconhecido
mas que nos mostra ser uma mulher carregando para casa um braçado de lenha seca, podendo parecer algo estranho para os citadinos jovens de hoje, ela não é de todo minimamente invulgar para quem, como eu, nasceu e cresceu numa aldeia.

Na verdade, em tempos que não distam dos actuais tanto quanto isso, nas aldeias de Portugal era vulgar, familiar, assistirmos a pessoas que faziam fogueiras nas lareiras de suas casas para seu aquecimento e confecção dos alimentos, em muitos casos porque havia que poupar no gasto do petróleo do velho e rudimentar fogareiro e tanto mais que o moderno gaz em garrafa ainda não havia chegado.

Falo do que bem me recordo, nos mais recuados anos da minha infância e juventude nas décadas de 40 a 70 do século passado na minha aldeia Natal, pequena e pobre, ali no extremo da fronteira sul do Ribatejo com o Alentejo.

O Chouto (Chamusca), encravado no meio de grandes propriedades agrícolas e onde a quase totalidade dos seus habitantes não possuía um metro quadrado de terreno, médio ou pequeno que fosse, que pudesse cultivar e daí retirar alguns bens para ajuda da alimentação, vivia quase exclusivamente da agricultura latifundiária e, para além dos que conseguiam um serviço permanente nas grandes propriedades, onde usufruíam duma escassa remuneração mas, ainda assim, garantida semanal ou mensalmente, beneficiavam todavia de casa gratuita e de um espaço para horta onde cultivavam muitos alimentos para seu consumo.

Mas, e os outros? Os que não tinham trabalho certo viviam da pobre e curta jorna em oferta e procura para pequenos trabalhos em quintais, hortas, searas, etc, feita nas tardes de domingos nas tabernas da aldeia onde eram procurados. Era aí a chamada "Praça da Jorna" da minha terra.

Acontecia por isso que, como algumas poucas excepções de comerciantes e pequenas profissões (pedreiros, carpinteiros, alfaiates, sapateiros) todas as casas da restante população eram realmente muito pobres, frias, inóspitas e de fraquíssimas condições de habitabilidade.

Lembro-me de muitas casas de telha vã, com cortinas em vez de portas interiores, janelas exteriores de taipais de madeira sem vidros e, até uma ou outra, bem me recordo, de piso em… terra batida, que o escasso dinheirito não chegava para adquirir cimento para as cimentar.

Ainda relacionado com a habitação e pensando naquela que os trabalhadores tinham nas grandes propriedades e, sendo verdade que a maioria dos lavradores a forneciam gratuitamente, numa reportagem que fiz para o “Jornal da Chamusca”, em 1973, encontrei e por incrível que pareça, uma triste realidade: o trabalhador, não obstante o parco salário e géneros (mantas anuais e cereais), construía ou mandava construir a casa e, se deixasse a propriedade, a casa era do patrão…

Por tudo isto, nessas recuadas épocas, vivia-se pobre, muito pobremente e tínhamos muitas crianças que andavam descalças pelas ruas térreas e empedradas, usavam velhas calcitas remendadas várias vezes e já herdadas de irmãos mais velhos e que, descalças, iam para a escola, algumas percorrendo assim, de Verão e de Inverno, sem calçado, largas distâncias desde as suas residências em povoados em redor da aldeia até à escola primária e, de certo, quantas e quantas vezes de estômagos vazios.

Recordo-me ainda que, na década de 50, a Cáritas Portuguesa (penso que o fez directamente, a Cáritas, porque não estou a imaginar Salazar e o seu governo, com a sua política autoritária, sobranceira e de isolamento mundial, tomar essa iniciativa...) conseguiu junto dos EUA umas grandes e importantes ofertas de muitas toneladas de leite em pó e queijo enlatados para ajudar a matar a fome dos portugueses. A Cáritas, como organização de cariz religioso, entregou às dioceses católicas a missão da sua distribuição que, por sua vez a passaram para os párocos e, estes, nas localidades onde não residiam e porque melhores conhecedores da pobreza nas suas terras, a cidadãos dessas terras. Na minha aldeia e porque bem conhecedor da realidade local, foi solicitado a meu pai que o fizesse e bem me recordo de situações de pobreza que meu pai nos contava à mesa e dos problemas de consciência que sentia para o fazer equitativamente não querendo ser injusto para quem quer que fosse, beneficiando alguém num eventual prejuízo de um seu vizinho. Era muito difícil não surgir um ou outro reparo e bem me recordo como o meu saudoso progenitor se sentia penalizado quando lhe soava que tinha oferecido a A mais um pedaço de queijo do que a B, mais uns gramas de leite a um que a outro.

Mas, tão bem quando foi possível, tudo foi distribuído várias vezes durante uns anitos (numa das vezes, para maior auxílio, chegaram também roupas ainda em excelente estado, ou até mesmo sem qualquer uso detectável) e não tenho dúvida que muitas crianças e adultos beneficiaram dessa graciosa alimentação e a todos ajudou a crescer, a viver e a minorar o seu  sofrimento do dia a dia. Sim, porque a quem vive e sobrevive do quase nada, quem nada tem para pôr na mesa na hora de alimentar os filhos, tudo o que lhe vem, escasso que seja, sempre é bem-vindo e sabe-se lá com que gratidão é recebido...

Enfim, a crónica já vai longa mas achei-a necessária para registar para a posteridade as dificuldades económicas vividas e sentidas por larguíssima percentagem da população portuguesa, aqui com a minha terra em particular, sobretudo naqueles recuados anos do pós-guerra e seguintes, quando a recuperação industrial, comercial, económica e financeira acontecia aceleradamente por toda a Europa mas onde em Portugal tal não sucedia em virtude da opção neutral e isolacionista de Salazar que nos livrou de muitas mortes na guerra, consoladora realidade, mas onde igual recuperação infelizmente não aconteceu por via da sua política de “orgulhosamente sós”...

domingo, 28 de novembro de 2021

TIA BEATRIZ FARIA 100 ANOS

Se hoje fosse viva, a minha doce e saudosa Tia Beatriz festejaria – festejaríamos todos! - o seu bem merecedor centenário natalício mas, quis o destino e as leis da vida que, depois de uma árdua existência de trabalho nos campos e na agricultura, de boa esposa e mãe de 1ª, se finasse em 2016, a uns escassos 5 anos de atingir os de certo ansiados 100 anos.

Porque sempre vi na Tia Beatriz um encanto de familiar e amiga e ainda porque foi o último elo familiar em linha recta que me ligava à querida e saudosa ascendência materna que se quebrou, senti sobremaneira quando nos deixou em Agosto de 2016 e não pude deixar de o registar em escrito no meu blogue. http://victor-azevedo.blogspot.com/2016/08/tia-beatriz-quebrou-se-o-ultimo-laco.html

Guardo da Tia Beatriz as melhores e mais gratas recordações que, ainda que pareça incrível, vêm desde o meu tempo de criança, com escassos anos de vida, quando ela e as outras suas irmãs solteiras, que me viram nascer e crescer, me disputavam para com elas dormir nas noites em que ficava em casa de meus avós no Anafe do Meio, um casal com residência e labuta dela e dos seus pais, que mantinham toda a área a produzir muitos e variados cereais e produtos agrícolas e, hoje, é um local irreconhecível que, para além de nem casario possuir, estar totalmente coberto de eucaliptos e mato.

De sorriso aberto, cordialidade e franqueza de trato iguaizinhos às das suas outras 3 irmãs, era um regalo falar e ouvi-la e, para além de um delicioso registo áudio feito em cassete em 1967, tenho em arquivo, no meu blogue, a narração de um diálogo com ela travado na Feira de S. Pedro da minha terra, em 2004, quando se jogava no país o Europeu de Futebol e havia a “doença” do hastear da Bandeira Nacional.

A Tia Beatriz que, de certo, durante toda a sua vida jamais se interessara por futebol, acompanhava em 2004 a carreira da nossa selecção e aspirava ter uma bandeira para hastear na sua residência, no Gaviãozinho de Cima. Naquela ocasião e não as encontrando à venda na feira, manifestou-me o seu desejo e, passados escassos dias, pelo correio, receberia a bandeira e logo pediu ao seu amado marido, Tio Chico, que a hasteasse. Isso comprovei e registei em foto numa visita posterior e todas essas deliciosas ocorrência aqui deixo registadas para a posteridade.

E, nesta data em que bem poderíamos festejar o seu centenário, não o podendo fazer, curvo-me respeitosamente em sua memória, grato, saudoso e reconhecido  pelos gratificantes instantes e dias que me proporcionou de são, saudável e bonito convívio!

terça-feira, 23 de novembro de 2021

AS "RECAUCHUTAGENS" QUE NÃO TÊM FIM...


Pois é… parecem não ter fim as minhas tituladas “recauchutagem” e ainda hoje regressei da 4ª (fica aí uma imagem da minha chegada a casa captada pelo atrevido do meu filho) e já me espera a 4ª no próximo mês…

Desta vez eram 2 nódulos a eliminar pela costumada químioembolização mas, um deles, por estar muito próximo do intestino, a srª drª , sabedora e experiente, entendeu aconselhável fazer-lhe um procedimento diferente à base álcool (alcoolização), este já com anestesia-geral por ser demasiado doloroso para uma simples anestesia local.

A ciência e o conhecimento dos homens e das mulheres que gastam horas infindas a estudá-la e exercê-la, tem evoluindo muito, felizmente e, até eu, no curto espaço destes 4 anos que frequento hospitais o comprovo a toda a hora.

Por exemplo, no que se refere às quimioembolizações, encontro provas evidentes dessa evolução. Enquanto na 1ª, há 3 anos tive de permanecer durante 12 horas com a perna direita estendida sem a encolher e com um enorme peso (2, 3 kgs) na zona da introdução e funcionamento do cateter para evitar um provável hematoma (que, mesmo assim surgiu, bem negro e grandote…), ontem, 3 anos passados, nada disso foi preciso e a perna ainda que tivesse de permanecer estendida 4 horas, é muito mais curto espaço de tempo e um criado a apropriado adesivo, a que 2 em 2 horas, por 3 ou 4 vezes, uma enfermeira aspirava o ar, resolveu o problema e com magnífico resultado porque não surgiu o mais pequeno hematoma.

Outro facto que melhorou muito foi o período de internamente. Há 3 anos foi de 45 horas, enquanto agora foram umas escassas 26 horitas!

Tudo factos que nos comprovam como, com o estudo e saber dos homens e mulheres, a humanidade consegue em muitos casos salvar vidas e na generalidade proporcionar a todos nós um melhor bem-estar e um prolongamento das nossas vidas.

E, eles sim, eles são os verdadeiros e únicos doutores no verdadeiro significado da palavra a merecerem esse tratamento educado, respeitoso e admirativo!

Doutores, únicos e verdadeiros doutores, são os médicos, que queimam horas, dias e noites das suas vidas no estudo e na sabedoria e que nos tratam das maleitas e suas dores e de nós cuidam, proporcionando-nos um menor sofrimento e um significativo bem-estar!



terça-feira, 2 de novembro de 2021

FIZ 77! FAREI NOVA CAPICUA?

Fiz hoje a capicua do 7, que o mesmo é dizer que atingi os 77 de idade e agora ocorre-me perguntar a mim mesmo se conseguirei fazer a do 8?

Gostava, francamente, de chegar aos 88 mas, a julgar pelas danadas das maleitas que me apoquentam, onde sobressai a sofrida figadeira, imagino que tal não será nada provável. O fígado é uma das principais peças do nosso organismo – se não mesmo a principal… - e, quando ele se estraga, como o desta velha carcaça, tudo se complica muito.

Fiz a comemoração aqui em casa no seio e companhia da família mais chegada e tudo decorreu lindamente desde a refeição, com um tintinho pequenino da Cartuxa, ao soprar as velas de um lindo e delicioso bolo de chocolate, “molhado” com um nadinha de espumante que, pela sua fraquinha graduação alcoólica, não fez qualquer estrago na pecinha das iscas.

Igualmente não faltou, no registo para a posteridade, a tradicional foto com o meu neto Rafael que, com os seus 15 anos já está bem mais alto que o avô que, valha a verdade que se diga, embora não seja exactamente anão, também não cresceu muito. E parece que começa a encolher com o peso dos anos... Eh! Eh!

E, pronto, agora resta fazer por no próximo ano festejar mais um aninho e assim progressivamente ir tentando aproximar-me o mais possível da capicua dos 8.

Se isso conseguir, aqui darei conta.   




 


quinta-feira, 28 de outubro de 2021

ANTIGO COMBATENTE - CHEGOU O CARTÃO!


Diz o nosso povo que “vale mais tarde que nunca” e nisso penso e concordo a propósito da emissão do “Cartão de Antigo Combatente” - “Titulo de Reconhecimento da Nação” (que recebi há 2 dias) e das (poucas) regalias que o mesmo proporciona aos que, como eu, combateram forçados nas danadas das guerras de África.

Depois de há meia dúzia de anos atrás os governantes atribuírem a cada antigo combatente um Subsídio Anual de 150€, agora, com o cartão, surgem mais uma pequenas benesses em que a mais significativa é sem dúvida a gratuitidade de alguns transportes públicos.

Sendo de juntar a isto o não pagamento de Taxas Moderadoras nos serviços de saúde e igual dispensa de pagamento nas visitas a museus, vê-se como envergonhadas são as pequeninas regalias mas que, mesmo assim, devo confessar, aprecio e agradeço.

Pena que só agora, meio século passado sobre tão horrível período da nossa história elas surjam porque, entretanto, muitos foram os ex-combatentes que partiram e delas não beneficiaram…

Mas, enfim, tarde mas é um pequenina recompensa para quem, forçadamente, perdeu os melhores anos da sua mocidade, para além e sobretudo de ter arriscado a própria existência.

No meu caso – e depois de ano e meio por cá como militar antes da mobilização – foram 26 meses de muito esforço e sacrifício para além do risco vivido dia a dia naquelas paragens.

Escolhi duas imagens para melhor descrever e ilustrar esse difícil tempo de fome, sede, frio e medo. Medo sim porque, em certas circunstâncias só não sentiria medo quem fosse inconsciente ou irresponsável... Na 1ª, à direita, temos a ementa da pobre Ração de Combate que, durante 14 meses em muitas ocasiões me matou a fome no inóspito e longínquo leste angolano. À excepção do Leite com Chocolate, nada daquilo era comestível, pelo menos para o meu paladar. Mas comi quase sempre porque a fome apertava e, em alternativa, fora do quartel, como andei vários meses, só o... capim…

A imagem, à esquerda, diz-nos como foi diferente a estadia de mais 12 meses finais a uma centena de kms a Norte de Luanda. Aí, para além permanecermos em guarda a instalações (culturas e fabricas transformadoras) de grandes fazendas (cana de açúcar, bananas e palma) continuámos a sair e a fazer escoltas e patrulhamentos mas, sobretudo no caso das primeiras, feitas de Unimog e sempre em estradas asfaltadas, afastando-nos assim muito do perigo das minas. Mas, tanto numa zona, como noutra, a inseparável e fiel G3, jamais era esquecida ou ficava distante… E, em ambas as áreas ela passava a noite à beirinha da cama… A zona era muito menos perigosa do que a do leste mas, mesmo assim, havia que não facilitar...

Enfim, passou-se e, se no meu caso, felizmente aqui estou para recordar e eventualmente beneficiar algo das pequenas benesses agora anunciadas, outros infelizmente essa sorte não tiveram…

E, desses, pouco ou nada reza a história...


segunda-feira, 11 de outubro de 2021

"CARTAS DA GUERRA"

Quis o acaso que, hoje, já no começo do dia (pelas 2,30 h), quando se completam 54 anos sobre a minha partida para a guerra, terminasse a leitura do livro “Cartas da Guerra”, de António Lobo Antunes que li numa penada, tal o interesse que me despertou.

E li numa penada porque, ao contrário de outras escritas dele, que li e que não me entusiasmaram, esta, tratando-se da publicação em livro, feita pelas suas filhas satisfazendo uma vontade da sua falecida mãe para que isso assim acontecesse depois da sua morte, contendo as cartas (aerogramas) escritas pelo escritor à então sua recente esposa, grávida na Metrópole, onde Lobo Antunes, (embora reduzindo a menos de um décimo os dramas e dificuldades vividas na guerra, como aliás também eu o fazia na correspondência que redigia…) descreve com realismo e saber a guerra vivida no leste angolano.

Li com vivo interesse as suas narrações, não só pela qualidade da escrita – excelente! - como também porque menciona lugares, paisagens, situações, costumes dos nativos, povoações, viagens e picadas, num rol de referências que me são familiares porque, embora 3 anos antes, também estive naquele longínquo leste angolano tendo ali permanecido mais de um ano a escassos 300/400 kms (o que para Angola é já ali…) na zona do Cazombo/Lumbala (Lobo Antunes sofreu as “passas do Algarve” um pouco a sul na área de Gago Coutinho onde, já no meu tempo, sabíamos haver “porrada de criar bicho”... ).

Foram lidas num sopro as mais de 400 páginas da edição e no final fiquei com pena de chegar à última tão depressa...

Belíssimo testemunho de uma vivência pessoal e idêntica a de muitos outros milhares de jovens portugueses que, na flor da vida, sofreram e em muitos casos perderam o melhor de si mesmos – a vida – por uma inglória causa que desde a 1ª hora se sentia estar perdida para que outros – uma escassíssima minoria de grandes proprietários de gigantescas fazendas com milhões de rendimento – abocanhassem mais e mais fortuna…

domingo, 10 de outubro de 2021

GUERRA COLONIAL - EXCESSOS

Por incrível que pareça e não obstante terem já passado mais de 50 anos, continuo nos dias de hoje periodicamente sonhando com tão difíceis dias vividos na Guerra Colonial entre 1967 e 1969, para além das lembranças que continuamente me afloram o espírito e foi assim que recentemente dei comigo a recordar os excessos de violência – bastas vezes gratuita e desnecessária, diga-se… - em casos de que tive conhecimento na hora, como o de uma “matança” gratuita (tenho mesmo um magnífico texto cedido por um amigo e camarada que a acompanhou dando-me a oportunidade de o publicar, coisa a que me recuso por o achar demasiado violento e mesmo sangrento…) e, noutros – ou mais correctamente, noutro – em que participei obrigado pelo meu superior. Na verdade, também eu fiz parte do grupo dos que estupidamente exerceram violência excessiva e desnecessária, se bem que, neste meu caso, bem fizesse ver ao alferes comandante das nossas forças que estava a lavrar num tremendo e desnecessário erro…

Aconteceu no distante e inóspito leste angolano. Coisa aí por volta de Abril de 1968.

Com meu pelotão, num total de aproximado de vinte e poucos homens, estávamos adidos (“hospedados”) nas instalações de uma Companhia do nosso Batalhão que não a nossa (localizada a mais 100 kms da nossa zona de acção) comandada por um Capitão, velho e experimentado cabo de guerra a cumprir a sua 2ª Comissão e que, não obstante a maquinaria que protegíamos no arranjo da picada operasse perto das suas instalações, sabedor e astuto como era, tratou de junto do Comando do Batalhão preservar o seu pessoal e “empurrar” eu e outros infelizes que, comandados por um militarmente ignorante e inexperiente capitão miliciano, mobilizado e arrancado das suas aulas de professor de Matemática, era como que um “pau mandado”, se não mesmo capacho, dos astutos militarões que comandavam as restantes companhias. Qualquer trabalho mais esforçado e complicado, lá avançavam os pobres coitados da 3ª Companhia, para além de, claro, o haverem instalado e aos seus subordinados, na zona mais complicada da área coberta pelo Batalhão…

No leste angolano, junto à fronteira com o Congo dávamos protecção militar ao pessoal civil e a duas máquinas niveladores que, munidas de grandes pás, aplanavam uma picada das suas irregularidades provocadas pelo uso e pelas grandes chuvadas muito habituais na zona quando, num determinado dia o alferes que nos comandava resolve chamar-me:

- Azevedo, tenho estado a observar e lá ao fundo da reta por vezes vejo alguns vultos a atravessar a picada nos dois sentidos: Congo – Angola e Angola – Congo. O Capitão pediu-me que uma vez que andamos cá por fora e na sua zona de acção lhe arranje um gajo ou outro, vivo ou morto e lhe leve porque fará um relatório como tendo sido trabalho dos seus homens e, sem sair do arame farpado, saca mais uns cobres para a sua Companhia.

Eu, francamente, fiquei meio aparvalhado com aquela conversa e contrapus:

- Mas, meu alferes, penso que não são turras a atravessar a picada. Os turras não serão tão estúpidos que, ouvindo as máquinas e em pleno dia, à nossa vista, resolvam passar ali. Penso que será gente que com suas famílias moram nos dois lados (Angola e Congo) e para eles não haverá fronteira. É o seu território e, de um ou outro lado tanto se lhes faz. Para eles, dois países é coisa que desconhecem e aí vivem com seus familiares e, naturalmente visitam-se, fazem a vida dos dois lados.

- Pode ser, mas não sei... - contrapôs-me firme e acrescentou: - O Capitão é um gajo porreiro, a nós nada nos custa e levamos-lhe um ou dois gajos e ele fará um relatório à sua maneira. Vamos embora fazer uma emboscada a quem vier.

Fiquei admirado com a ligeireza da aventura perigosa e desnecessária mas não tinha alternativa… Havia que obedecer.

Avançamos mesmo. Uma secção, comandada pelo outro furriel ficou de serviço à protecção das máquinas e do pessoal em trabalho e, com a minha e a dele, partimos para aquela coisa sem jeito e estúpida.

Emboscados dentro do capim bem alto no local, em linha com o trilho de passagem das pessoas, eu e o alferes ficamos nos extremos da formação, sendo que a dele ficou mais junto à picada, por onde alguém entraria vindo do Congo. Deu-me ordens para que o “premiado” com a vinda de um ou mais turras do seu lado desencadeasse o ataque, a que de imediato todos os restantes atacariam em força. Eu tive o cuidado de dar ordem aos meus soldados que só abririam fogo depois de eu o fazer e nunca antes e fiquei a rezar a todos os santinhos que o premiado com a chegada de vítimas fosse mesmo do lado do alferes…

Não esperamos mais de ¼ de hora e, por sinais, fico a saber que alguém se aproximava no outro lado. Levantei um pouco a cabeça e vi 3 pessoas (uma mulher na frente seguida de uma criança dos seus 9/10 anos e um homem com uma bicicleta pela mão) que, vindas do Congo e depois de atravessarem a picada, passiva e calmamente se aprestavam para entrar no trilho e… passados breves instantes a metralha forte, intensa e mortífera, fez-se ouvir: Tau! Tau! Tau!

Gritei para os meus rapazes que ninguém fazia fogo e eles obedeceram e, terminado o tiroteio, de imediato parti (partimos) para ver o “estrago”…

E que vi eu? Vi a mulher aos gritos a fugir em grande velocidade trilho fora no sentido que levava e, a meia dúzia de metros acocorada e chorando em gritos aflitivos de pânico, a pobre criança, implorava pela mãe. Aproximando-me peguei-a. Levantei-a, acariciei-lhe a cabeça e a face e pedi-lhe que não tivesse receio que não lhe faria mal. Dei mais 2 ou 3 passos e adiante encontrei a bicicleta caída, com uma cesta no suporte feita de cascas de árvores com duas galinhas a cacarejarem assustadas e, logo após, deitado por terra, gemendo muito, um homem de carapinha muito branca com a coxa da perna direita em mísero estado. Tão mísero e horrível estado que aqui me abstenho de o descrever... Assustador, dramático, muito grave, por demais horrível e dramático.

Quando cheguei perto já o alferes ali se encontrava de cara muito carrancuda. Olhou para mim, levou a mão ao quico que levantou coçando a cabeça, confessando-me:

- Azevedo, acho que já estou arrependido de me ter metido nisto…

O Azevedo não abriu a boca. O Azevedo não respondeu. Tem situações em que a boca fechada diz mais do que se se abrir…

A mulher que fugira regressou ainda muito assustada e receosa mas, não obstante, aproximou-se ficando horrorizada com o espectáculo. Virou de imediato o olhar e, pegando na criança, levou-a pela mão. E não mais as vi…

Então o alferes perguntou-me sobre o que achava de levarmos o homem ao destacamento militar mais próximo para ser tratado.

O aquartelamento ficava a cerca de 20 kms e as suas tropas não pertenciam ao nosso Batalhão e antes a um outro instalado numa vila perto (mais 20 ou 30 kms) na mesma picada.

Concordo, mas ponho em dúvida que o velho indígena, face ao muito sangue que perdia, não obstante o precário garrote que um soldado logo lhe fez com uma peça de roupa, se aguentasse vivo… O pobre tinha o destino traçado...

Meia hora depois, chegados ao destacamento, o alferes que o comandava aproximou-se de imediato e ouviu a explicação/justificação do meu alferes e acedeu a levar o pobre coitado à vila para tratamento, se bem que duvidasse que se aguentasse e rematou dirigindo ao meu alferes, comigo presente:

- Ó pá, mas gente desta, se eu quisesse enchia todos os dias várias camionetas. São pessoas que vivem e têm família dos dois lados e para eles não há fronteira…

O alferes olhou para mim. Eu olhei para ele e nada lhe disse.

E foi assim…

Gratuitamente! Estupidamente!...  

EM TEMPO – Na foto junta, tirada no local e no tempo, mais dia menos dia, onde ocorreu o episódio narrado na crónica, enquanto a água do cantil me mata a sede a indumentária dos soldados diz bem do calor que se fazia sentir. na época. Março, Abril e Maio são sufocantes, naquelas áridas paragens do leste angolano.

domingo, 3 de outubro de 2021

"SUA BENÇÃO, PAI!" - "SUA BENÇÃO, MÃE!"

Minha mãe, ao vislumbrar ainda que à distância a chegada de meu avô Gregório, largando um trabalho que estivesse a fazer ou suspendendo mesmo uma eventual conversa com outrem, sempre repetia, séria e, em boa verdade, solenemente, o mesmo interessante cerimonial:

Nesta foto, seguramente de 
antes de 1943, de que gosto
 muito, a minha ascendência  
 materna, com meus avós
 Maria do Rosário e Gregório
 Alves e as  4 filhas (Maria,
minha mãe, Beatriz, 
Domingas e Luísa)

Dava um, dois passos na direcção do progenitor, punha as mãos frente ao peito como que para iniciar uma reza, inclinava levemente o tronco para a frente em sinal de culto e cortesia e, respeitosamente, rogava-lhe:

- Dê-me a sua bênção, pai!

Obtendo de imediato a resposta:

- Deus te abençoe, Maria!

Vinda a minha avó Maria do Rosário (mãe e filha tinham nomes iguais) o cerimonial e as palavras de rogo eram idênticas mas, aí, nesse caso, na resposta tinha uma pequenina variante: Minha avó, por vezes, substituía-lhe o “Maria” por um familiar “rapariga”.

- Deus te abençoe, rapariga!

Vi estas situações milhares de vezes e sempre as mesmas me fascinaram pela religiosidade, pela solenidade e muito até pelo encanto que nelas sempre encontrava e tanto mais porque, ao contrário dos meus outros primos do lado materno, eu e minha irmã éramos os únicos netos que assim não tinham sido educados no cumprimento aos avós.

Manda a verdade que, se hoje me interrogo do porquê dessa diferença, não me recordo de alguma vez ter confrontado meus pais do porquê dessa desigualdade de educação mas, francamente, hoje, olhando para trás, creio ter encontrado a justificação

Sendo o pedido da bênção um cerimonial de raiz religiosa e conhecendo a vivência dos meus antepassados paternos e maternos, sobressaindo ainda a influência marital de meu pai sobre minha mãe em muitos aspectos e, neste caso vertente, na educação dos filhos, é bem provável que tenha prevalecido a vontade de meu pai.

Na ascendência dos lados de minha mãe (analfabetos e rurais, em que todo o tempo era pouco para cuidarem das terras e do seu cultivo) pouca prática religiosa tinham - até porque na aldeia muito pouco culto também havia para além da missa dominical a que uma vez ou outra assistiam mas, certamente, trariam doutras paragens de sua origem as suas raízes religiosas (da zona de Abrantes vieram para o meu Chouto natal para arrotearem terras) mas, já outro tanto não acontecia com o meu lado paterno…

Assim e embora reconheça que meu pai (vindo da vila, algo letrado para o comum dos cidadãos, comerciante) morreu católico praticante no melhor da palavra, isso só aconteceu a partir dos seus anos 50 de vida porque, até aí, se bem que sem qualquer hostilidade à causa religiosa e até com um excelente relacionamento com os párocos da terra, resultante do seu bom trato, da sua educação e cortesia, estava longe de ser um praticante convicto e essa situação só se alterou quando frequentou um Curso de Cristandade e, efectivamente, aderiu de alma e coração à causa religiosa e passou a ser um bom praticante mas, valha a verdade que se diga que a religião foi avessa à sua formação enquanto criança e jovem.

A mãe (minha avó Adelaide) não morria muito de amores pelos padres e o marido (meu avô José Azevedo) era por demais hostil à religião e se não veja-se o celebre caso do “desaparecimento” do S. Francisco, na Chamusca, história que já narrei aí no meu blogue anos atrás (http://victor-azevedo.blogspot.com/2011/04/avo-adelaide-e-o-s-francisco.html) quando, no distante tempo do governo de Afonso Costa, avesso à religião, com a ajuda de um amigo fez desaparecer do templo a imagem do santo, imagem que enterraram num quintal junto ao pé de uma oliveira e que só foi descoberta 50 anos volvidos, já com eles falecidos mas com minha avó viva. Avó Adelaide que de tudo sabia mas que nunca o desvendou, possivelmente por compromisso assumido perante o marido.

Portanto, tendo esta ascendência paterna é bem provável que ela tenha influenciado a educação do pequeno Victor e sua irmã Adília e daí nunca terem exercido essa forma bem interessante e mesmo solene do “Benção, pai! Benção, mãe!”

Mas devo confessar que tenho pena!…

Era bonito, era educado, era respeitoso e cimentava carinho e espírito de corpo entre pais e filhos e até entre avós e netos.

Mas, como tudo assim, acabou...

segunda-feira, 20 de setembro de 2021


Coimbra, 13 de Abril de 1943

 Posso então sair amanhã?

- Pode. Um pequeno passeio a experimentar.

- Não. Se ponho os pés na rua, vou direita à Rainha Santa pagar a promessa que lhe fiz.

- Ah! Fez-lhe uma promessa?

- Então a quem é que me havia de apegar, na aflição em que me vi?

- Evidentemente…

E desci as escadas atordoado, já sem saber se fora eu que curara aquela criatura da sua labirintite, ou se teria sido, de facto, a mulher de D. Dinis.”


(Diário II

Miguel Torga, médico, poeta e escritor.)


segunda-feira, 13 de setembro de 2021

MÁS NOTÍCIAS - AVANÇA A IV "RECAUCHUTAGEM"!

Vinda da parte do sr. dr. que sabe da matéria como poucos, acaba de chegar a notícia que, como é bom de imaginar, abanou um bocado com a minha “caixinha dos pirolitos”: há que fazer, breve, nova quimioembolização e eliminar mais um “brinco” criado na “pecinha das iscas”.

Novo internamento que, a exemplo dos anteriores, possivelmente será curto (2, 3 dias) e novas dores e preocupações para este sofrido rapaz…

Assim, de tratamento em tratamento, e enquanto a ciência e o saber dos homens o permitir, aqui vou adiando mal maior.

Felizmente no dia-a-dia sem dores (a “traição” destas doenças ditas silenciosas, não sendo desagradáveis porque não doridas, são por de mais graves e perigosas), com a organização e os prestimosos e graciosos serviços de SNS, cá vamos controlando esta encrenca que me atingiu e que há já 4 anos me mantém em contacto permanente, com médicos, hospitais, consultas, exames, medicamentos, etc.

Mas há que olhar em frente e seguir o parecer e saber da ciência e dos homens e mulheres que muito estudaram e muito sabem.

É o que faço no dia-a-dia.


domingo, 12 de setembro de 2021

...E O APRENDIZ VAI EVOLUINDO...

Com a permissão de pescar numa nova herdade onde me facultam a entrada e onde sabia de um bom local com achigãs, julguei ser o momento certo para fazer o meu Rafael iniciar-se na pesquinha de tão desportivo peixe, largando a cana, o asticô e as malucas perquinhas que, sendo fáceis de fisgar, entusiasmam, divertem mas não passa disso e não é pesca que se veja. Não resolvem.

Ora, a pesca ao achigã é coisa totalmente diferente e, por isso, o meu desejo de ensinar o netinho a iniciar-se nesse passatempo/desporto que, ao longo dos anos tanto prazer e bem-estar me tem proporcionado.

Não sendo aconselhável entretê-lo com isso no período das aulas, só nas férias o costumo levar e, este ano, com ele com outra idade e com o novo local de pesca (um pequeno açude em propriedade fechada e por isso bem “recheado” de verdinhos), entendi ser o tempo e o local ideal para o iniciar nesta belezura que me apaixona e dá saúde porque vivo em contacto com a natureza, respiro ar puro e, melhor ainda, em tempos conturbados, aliviou-me a cabeça e fez-me esquecer preocupações e dificuldades surgidas.

Ontem foi a 2ª lição e desde os primeiros instantes, observando-o, logo verifiquei como tinha evoluído no trato da cana, do carreto e da linha com a respectiva amostra artificial, manejando o conjunto com mais destreza e os resultados não se fizeram esperar: para além de vários peixinhos com 100/200 grs naturalmente em crescimento para um dia nos deliciarmos com umas boas ferragens, o meu aprendiz fisgou mesmo um grandolas que, pesado ali mesmo por curiosidade, mostrou-nos 0,750 kgs. na balancinha de bolso.

O Rafael ficou admirado e algo surpreendido, como é natural e, o avô confessa, francamente, que ficou ainda mais satisfeito por ver o neto sacar um bichinho daqueles das águas - muito mais satisfeito! - de que se tivesse sido ele próprio a ferrar aquele bonito achigã.

Proporcionou-lhe, estou certo, mais entusiasmo, maior prazer e, naturalmente, maior vontade de continuar na prática de tão salutar desporto em que agora se inicia.

Para a posteridade fica aí a imagem do Rafael com o bonito achigã junto à pequena represa e a convicção que, pouco a pouco, ainda mais familiarizado com os apetrechos da pesca e com outro à-vontade com as “chatas” situações que se vivem nestas jornadas no campo e no mato (segurar peixes vivos, mato, silvados e ramagens, calor e, sobretudo, as muitas e chatas mosquinhas de Verão que não largam lábios, olhos, orelhas de um indígena, sobretudo depois de manusear um peixinho...) ele continuará evoluindo e, a exemplo de ontem, bastas vezes o “aprendiz” fará ver ao “mestre” como se pescam achigãs...


sexta-feira, 10 de setembro de 2021

MORREU UM SENHOR


Após internamento hospitalar de alguns dias, morreu hoje de manhã o Dr. Jorge Sampaio, antigo Presidente da República e com a sua partida deixa-nos um homem integro, simpático, educado, amante de causas e humanista convicto e actuante, de trato muito afável e por isso bem agradável no convívio com o seu semelhante!

Com um percurso de vida absolutamente notável e gratificante de cidadão, pai de família e político foi, desde estudante universitário nos regimes ditatoriais dos Drs. Oliveira Salazar e Marcelo Caetano, em que se fez notar como lutador primeiro e, depois, já como advogado, gracioso defensor jurídico dos então presos políticos a, já Presidente da República, por voz e actos corajosos e importantes, apaixonado defensor da causa do na época chamado Timor Leste que lutava por ver reconhecida a sua independência com separação da Indonésia invasora. Com muita coragem, nas instância superiores e na imprensa internacional Sampaio abraçou a causa de que felizmente sairia vencedor.

Humanista, era um homem de grande franqueza e coluna direita e ficou na memória de muitos a forma corajosa como, em plena campanha eleitoral para a presidência da República e perguntado, talvez com segundas intenções, se era religioso e praticante, respondeu de pronto que era ateu, indiferente às consequências que isso acarretasse na votação e perante o alarme dos seus membros de campanha que entendiam que, com essa confissão, as eleições estavam perdidas. Afinal viria a vencer, tendo como resultado uma maioria absoluta.

Com a morte de Jorge Sampaio Portugal fica mais pobre porque perde um grande homem, uma boa pessoa e um grande senhor na política e na vida.


segunda-feira, 23 de agosto de 2021

O "PRIVILÉGIO" DE UMA "CARÍCIA"...

Uma simpática destas "asiáticas" da imagem, ou qualquer uma outra  da sua desgraçada família, resolveu esta manhã, na hoje demasiada esquentada Beira Alta, fazer uma “carícia” a este pobre septagenário, exactamente no indicador da sua mãozinha direita.


A gaja, enorme, ainda levou um sopapo que, todavia, não a liquidou (rija, a bicha!) e voou de imediato para ir "acariciar" nova e descuidada vitima.

Uma dorzinha danada e um progressivo inchaço, para além de um ardor e comichão muito pouco recomendáveis e aqui está este pobre coitado de mão meio redonda que nem tripa de chouriço soprada até ficar meio esférica...


Palavra que, pela experiência sentida e, agora, no presente ainda bem vivida, é prova que não se recomenda minimamente. Assim como a picada de uma abelha comum mas, neste caso, feita com um fueiro de carro  de bois, dos usados antigamente na minha aldeia. 


E, pronto… Agora, se calhar incha, incha, desincha e passa.


Se é que não exigirá futura deslocação a tratamento extra especializado...

sexta-feira, 11 de junho de 2021

VELHOS NACOS DO MEU CHOUTO ANTIGO (5)


PRODUÇÕES AGRÍCOLAS E SUAS SEMENTES

No prosseguimento do hábito de periodicamente visitar as velhas cartas e aerogramas que recebi nos recuados anos de 1967 a 1969 em que na guerra de Angola me correspondi com um considerável número de familiares e amigos, fiz  nestes dias mais uma pequena incursão nesse arquivo e encontrei uma missiva cujo conteúdo, pelos termos usados, quiçá invulgares nos dias de hoje, entendo adequado incluir no que anos atrás designei de “nacos” que aqui venho redigindo e publicando e que se prendem com narrações mais ou menos curiosas relativas aquele período na minha aldeia, no interior da charneca ribatejana.

Ao contrário dos anteriores “nacos”, que foram retirados de correspondência de meu pai, este vem de uma carta escrita por um velho amigo, Estêvão Lopes de Matos de seu nome de baptismo mas em vida conhecido por Estêvão Maia, dono de uma propriedade agrícola na freguesia que administrava e da qual vivia economicamente com sua família. Homem educado e de bom trato, havia sofrido já em adulto uma pequena perturbação mental que o caracterizava e que o acompanhou até ao fim dos seus dias mas que, com mais um menos eficiência não impedia que administrasse a sua casa agrícola, tanto mais que os filhos, à medida que iam crescendo também colaboravam nessa administração, numa administração que, como comprovamos pelo “naco” desta carta, bem dá para ver que ele controlava.

Fazia favor de ser meu amigo e com ele sempre tive excelente trato, num hábito quase diário de muitos anos porque com muita assiduidade frequentava a casa de meus pais certamente por estima e dedicação e, daí, tê-lo incluído no vasto grupo de amigos com quem trocava correspondência no período de estadia em Angola. 

Ao longo dos 26 meses de guerra foram várias (talvez perto de uma dezena) as cartas trocadas com o sr. Estêvão Maia, que sempre me respondia com pormenorizada escrita e, se na maioria, como afinal se passava com os demais correspondentes, os assuntos abordados eram sobretudo de caracter pessoal, por vezes, num ou outro caso, como o  que hoje elejo, surgiam abordagens que iam além disso e, eventualmente, bem poderiam interessar a outras pessoas.

É o caso do “naco” que aqui deixo onde o amigo Estêvão Maia dá conta do rendimento das suas sementeiras, colhidas no Verão de 1969, usando termos que então se usavam mas que caíram totalmente em desuso, até porque, na freguesia, antes tão cultivada e produtiva, hoje não temos um cultivo e uma produção digna desse nome.

Embora reconhecendo não ser pessoa habilitada na matéria, julgo todavia não estar errado quando deduzo que, quando são referidas as “sementes” e o seu rendimento quererá dizer que, por cada kg de semente, resultaram x kgs de produção.

Para a eventualidade da caligrafia acarretar dificuldades de leitura, fica a sua “tradução” com naturais correcções gramaticais:

“Agora, cá pelos nossos Anafes (designação da localização da sua propriedade) já se vão fazendo as nossas colheitas de pão pragana, deu poucas sementes; trigo deu 5 sementes e meia; centeio, 3 sementes; aveia, 6 sementes; cevada, 2 sementes. Agora temos os nossos milhos na eira, que dão qualquer coisa mas também não dão tanto como os patrões precisam para recompensar as despesas que o patrão tem. Ainda se salvam melhor os seareiros porque têm menos despesas e quase todos fazem o trabalho pelas suas mãos e seus próprios braços; o nosso arroz, vamos ver como se porta o tempo, para que haja boa colheita e boa produção.”

E que o saudoso amigo Estêvão Maia descanse em paz!

segunda-feira, 24 de maio de 2021

BOAS NOTÍCIAS - III "RECAUCHUTAGEM" FOI EFICAZ!


“As lesões surgidas foram eliminadas!”

Estas palavras bonitas e mais que agradáveis, ouvidas hoje da boca do doutor que há anos me acompanha nesta malfadada maleita na figadeira que me incomoda, soaram-me como que um hino aos ouvidos e aos sentidos.
 
Disse-o observando o resultado da TAC efectuada 4 semanas depois da quimioembolização de 19 de Abril e provocaram-me o alívio e o prazer que se adivinha.

A ansiedade e até preocupação em saber se a eficácia teria sido plena e se tenho futuro por mais um tempinho, parece-me lógica e natural e, ouvir de quem sabe, que a coisa funcionou e está debelada ainda que temporariamente, trás algum sossego por mais um período de tempo que irá até novo exame.

Mas ainda bem que assim foi porque este último tratamento foi por demais doloroso e difícil e assim esta boa notícia soa como que a uma recompensa pelo momento vivido.

Seguir-se-ão novas intervenções e, certamente, novas dificuldade mas, há que ter calma e paciência, coisa a que, feliz ou infelizmente, já me habituei.

E, depois, depois se verá... 
  

segunda-feira, 3 de maio de 2021

AS "HABILIDADES" DO GARCÊS

 A pobre Maria de Deus bem que se lhe lamentava todos os dias e a todas as horas:

- Manel, não tenho um pó de café, um grão de arroz, uma côdea para dar aos cachopos… Nem dinheiro, pouco que seja, para ir à loja do sr. António, dar algum para baixar no rol e trazer mais qualquer coisinha para calar o choro dos miúdos…

Manuel Garcês ouvia, bem sabia que assim era mas também conhecia a realidade: por toda a freguesia de grandes propriedades, os lavradores tinham já os seus trabalhadores contratados ano a ano e restava aos que dessa situação não viviam, estar pelas tabernas da Choça aos domingos de tarde na esperança que um patrão surgisse e acordasse com quem escolhesse pela sua vitalidade um diazinho ou dois de jorna. Todavia sobre ele corria já na Choça uma certa suspeita de que tinha como que um íman na ponta dos dedos das mãos e, por isso, a escolha pelos seus serviços nem sempre era a mais desejada... Havia quem tivesse receio. Valia-lhe então o fraco “gancho” da Junta com quem acordara o pequeno compromisso de todas as noites acender os pouco mais de meia dúzia de candeeiros a petróleo da via pública, coisa que lhe trazia pouco proveito ao fim do mês, a que juntava o escasso ganho de uma vez ou outra abrir no cemitério da terra a cova para sepultura de alguém que partira desta para melhor. Mas, mas era proveito de pouca monta. Um, dois mortos por mês se tanto e já era muito.

Assim, ao Manuel Garcês, homem para mais introvertido e de poucas falas, restava-lhe aceitar de vez em quando a realização de um ou outro biscate de meio-dia, um dia, numa horta vizinha a semear ou arrancar umas batatas, plantar umas couves, semear uns feijões e pouco mais.

Embuchara a companheira por 4 vezes e ao longo dos dias ouvia-lhe agora os lamentos, numa situação que ele também bem sentia, de não ter a massa, o arroz, o feijão com que desejava encher e aquecer os estômagos do pequeno rancho de filhos… Os vizinhos viam a situação e ajudavam um pouco era verdade mas, como eram igualmente pessoas de parcos recursos, a ajuda amenizava um pouquinho o problema mas não o resolvia.

Foi então que o Garcês começou a ponderar e a estudar a forma de arranjar algum proveito com pouco trabalho…

Precisava de azeite, feijão? Sabia onde os encontrar e não seria muito difícil, entendia. Verdade que havia dois cães que, à solta pelo Casal faziam a sua guarda mas os animais conheciam-no, ele sabia os seus nomes e, com a ajuda de uma pequena côdea que levasse no bolso, rapidamente dariam ao rabo e o percurso ficaria livre…

E se o pensou, rápido o executou.

Numa fria, chuvosa e negra madrugada de Inverno, na sua residência a meio do quarteirão da rua, José e Maria algo extenuados pelo tentar aliviar umas colicazinhas do seu pequeno rebento de berço, procuravam no leito pegar no sono quando Maria começou a ouvir, no silêncio da noite, os passos pesados e firmes na calçada de alguém que, rente à sua janela do quarto, iria a passar…

A mulher tocou levemente em José, que entretanto pegara no sono : “Zé, escuta!...”

O marido escutou, ouviu os pesados e encharcados passos que se afastavam em direcção ao cimo da rua e logo palpitou:

- Olha, não a vai fazer, já a fez!...

E logo pela manhã, na pacata aldeia da Choça, se ouviria a notícia: 

- Assaltaram o celeiro do Casal do Onofre de Baixo e roubaram 2 alqueires de feijão branco, 2 alqueires de feijão frade e 2 garrafões de azeite!

Maria de Deus não aprovava mas resolvera calar-se e nem ao marido contestar: sendo mau e feio, bem mais lhe custava ouvir os choros dos cachopos de barriga vazia. Era feio, estava mal, mas…

Nos dias seguintes falava-se, falava-se no assalto mas, pouco a pouco tudo a água do ribeiro levaria e seria passado.

Correram os dias e as semanas e o Garcês, atento ao “diz-se, diz-se” acha que deve parar, esperar que a água do ribeiro leve a “enxurrada” e, para além de uma covita ou outra em que os seus serviços eram requisitados no cemitério, ao cair dos dias prosseguia no seu ritual de, escada às costas, candeeiro ali, candeeiro acolá, petróleo no depósito e chama na torcida. Uma vez ou outra - vá lá saber-se porquê?… - um pouquinho menos de combustível no da esquina da loja do sr. António no largo principal da aldeia e nada mais digno de nota.

Nada mais, não é bem assim… Na realidade Ti Barnabé, quando pelas 5 da matina passava pelo largo a caminho de ordenhar as ovelhas já uma vez ou outra notara e diria ao sr. António:

- Quando ao romper do dia vou para o bardo ordenhar as ovelhas, já tenho reparado que o candeeiro ali da rua está aceso, o da padaria também e o da Rua da Nascente igual mas, por vezes, o da esquina da tua loja, já está apagado.

O sr. António ouvia o reparo uma, duas ou três vezes mas, como à meia-noite fechava, ia para casa e via o candeeiro de pavio aceso, pensava numa qualquer distracção no abastecimento dessa tarde e depressa esquecia. Coisa sem importância.

Tratava-se da única mercearia da aldeia. Sempre muito abastecida e bem recheada, fundada e gerida pelo sr. António e depois também pelo filho Zé, feita que foi a sua 4ª classe e que, embora ainda rapaz, já mostrava queda para o negócio, tinha considerável clientela, se não mesmo muita e com o pequeno café contíguo, ligados por passagem de serviço no seu interior, situada em destacado quarteirão no largo principal da terra, era o mais considerável comércio da pequena aldeia. 

E a vida da pacata Choça, numa terra onde nada acontecia, decorria sem novidades de maior, sossegada, calma. Homens e mulheres trabalhadores rurais labutavam todos os dias agarrados à enxada, à foice, à picareta e à pá e, chegados ao lar, quantas vezes noite fechada, era a ceia para tratar, os miúdos para cuidar e a cama para repousar o maçado corpo. E, no dia seguinte, idem-idem, aspas-aspas, num ritmo só  quebrado aos domingos, em que o merecido descanso lhes era permitido.

O sr. António, dia a dia ia flanqueando as portas da sua loja, fornecendo o arroz, o açúcar, a massa, o feijão e o café e, num hábito já tornado obrigatório, tudo ia para o rol. “Assente, sr. António! Assente!” Ele isso sabia e também sabia que, finda a semana, recebidos pelo trabalhador os magros escudos da semana devida, ele ali se dirigia, mandava apagar ou abater no rol e a cena seguiria para novos capítulos. Habitual, costumeira, tradicional, calma e séria.

Tudo, assim, pacatamente decorria quando, subitamente e depois de sem surpresa abrir a porta do estabelecimento, para seu espanto encontrou a lata do café em pó destapada, de tampa ao lado, destapada e com algum café vertido sobre o balcão e, para sua nova surpresa, viu que havia também derramada do grande gavetão uma porção de açúcar, igual derrame no gavetão do arroz e até no do feijão encarnado... 

Chamou o filho:

- Zé, como raio verteste este café e deixaste ontem a lata por fechar? E como verteste para fora dos gavetões tudo isto que aqui vejo?

O Zé, estupefacto;

- Eu, pai? Eu não fui. Juro!

Calou-se, observou melhor à sua volta e depressa entendeu que havia recebido a visita de um “rato” noturno. Mas como, se a porta estava fechada à chave, língua corrida, sem nada que provasse o arrombamento? Intrigante. Intrigante, sem dúvida. Disse ao filho que se calasse, ficasse com se nada tivessem reparado e no futuro logo se veria… 

Mas o sr. António contou pelo menos à esposa e mais um familiar chegado, dando a mesma recomendação de sigilo. Desconfiava na verdade do Garcês mas… não tinha provas.

O nosso “rato” deixou passar a onda, esperou que tudo esquecesse e, passados um meses, sem que os lamentos da sofrida Maria de Deus abrandassem com a visão e o sentir dos filhotes implorando comida, o seu companheiro pensou para com os seus botões:

- Mas, para quê ir e vir tantos metros rua abaixo, rua acima se, aqui, ao virar da esquina, está o celeiro onde o merceeiro António guarda os stock mais vastos e pesados e que, pouco a pouco, na medida das necessidades, vai levando aos poucos para a loja? É só andar meia dúzia de passos, dobrar a esquina e fazer a “colheita”…

E, tendo esperado por noite escura, abriu com a habilidade que adquirira a fechadura da pesada porta de madeira, serviu-se de farinha e azeite, o que mais ali armazenado lhe convinha e, sorrateiramente, saco às costas e vasilha na mão, deu a volta à esquina e, segundos depois, estava em casa.

Tudo parecia ter corrido pela melhor forma mas, todavia, não reparara numa pequenina/grande falha cometida: ao mudar a farinha de um saco para outro derramara uma considerável porção e, para agravar a falha, igual derrame acontecera quando retirava o azeite da grande talha que, por mor das suas dimensões não poderia levar às costas e, por isso, retirara uns quantos litros para uma vasilha que por ali encontrara. Retirara mas, desastradamente, uma boa porção vertera para o chão cimentado.

A farinha com a mistura do azeite formara uma papa que o nosso homem inadvertidamente pisou várias vezes, tendo saído sem se aperceber do rasto deixado. E o rasto era um “carreirinho” direitinho, direitinho à porta da sua habitação…

No dia seguinte, pelas 9 horas, António a caminho da loja para a abrir ao público, porque forçosamente passava pela frente do celeiro, deu-lhe um baque no coração quando viu o surpreendente espectaculo das pegadas brancas de farinha e azeite na calçada, dobrarem a esquina e seguirem direitinha para a porta do vizinho Garcês…

Não! Assim, não! Era demasiado! Abusivo, descarado, ofensivo, muito ofensivo!

Mas o sr. António não foi pedir explicações, não. Pensou: Enervar-se-ia muito, seria ofendido, sairia a perder. Mas o assunto desta vez não poderia ficar assim, sem consequências.

Era um dia, de dois da semana em que a patrulha da GNR visitava a Choça e ali pernoitava. Esperou que chegassem e de imediato lhes apresentou a queixa. Os guardas logo decidiram que de imediato iriam ao local em busca dos géneros mas o sr. António pediu-lhes que não o fizessem. Horas antes tinha caído uma chuvada, o rasto já pouco se notava, aquilo era uma miséria pegada e de pouco adiantaria. Pretendia apenas que o chamassem, lhe dessem um valente “aperto” e podia ser que o homem parasse em definitivo com as suas visitas noturnas.

Foi o que fizeram. Chamaram  o Garcês ao posto que começou por negar tal façanha mas, posto ao corrente do que os guardas sabiam sobre o rasto deixado, testemunhas do mesmo e tanto mais que ele próprio já notara que tinha uns pequenos restos de massa branca em redor das solas das botas, calou-se de imediato. Confessou o roubo e ouviu das autoridades a natural sentença: que nunca mais lhes surgisse qualquer queixa dele mexer em coisa alheia. Se tal sucedesse teria a certeza que passaria umas noites atrás das grades.

O nosso Garcês ouviu, compreendeu a ameaça e decidiu que, das suas “habilidades”, não mais se ouviria falar. 

E assim aconteceu ao longo do tempo, não havendo dúvida que a lição lhe tinha serviço de emenda.

Mas, - nestas coisas há sempre um “mas”… -, uma bela manhã quando o sr. António e o filho Zé se apressavam para abrir a pesada e velha porta de madeira do estabelecimento, usando a comprida e volumosa chave de ferro castanho, barraram com a dificuldade de fazer recolher a língua da mesma. A chave entrava sem problema, dava ¼ de volta mas... parava ali e não recolhia a língua. Insistiram, insistiram, foram buscar uma chave de fendas que introduziram na ranhura da fechadura, pararam alguns vizinhos passantes e tentaram ajudar mas... nada. A danada da língua não recolhia e não flanqueava a porta.

Já desesperavam pai e filho quando, subitamente, António ordena aos presentes:

- Esperem. Não forcem mais. Vou ali e já resolvo o problema.

Dito isto, o sr. António vira costas e segue calçada fora até ao cimo da rua onde desaparece. Todos se olham curiosos na expectativa do que iria ele fazer para solucionar a questão?…

Eis quando, passados curtos minutos, o veem surgir acompanhado do Garcês que, de passada algo lenta por mor da “quebradura” que ultimamente lhe provocava forte inchaço no baixo-ventre e lhe dificultava os movimentos, vinha em auxílio do comerciante.

Garcês chegou, tirou do bolso um pequeno arame, pediu que lhe passassem a chave de fendas e que se afastassem um pouco; operou escassos instantes com a chave e o arame, introduziu a chave de ferro na fechadura e... fez correr a língua. Abriu a porta.

Todos se olharam pasmados da facilidade mas, Garcês nem os mirou. Virou costas e, passo lento retornava já em direcção à residência, quando o sr. António o chama:

- Manel? Espera aí homem. Quanto te devo?

- Não deve nada, sr. António.

- Não? Está bem. Mas, olha, só um pequeno acordo vamos fazer: de hoje em diante estás dispensado de acender aqui este candeeiro da esquina da minha loja. Eu mesmo trato dele e vou falar dessa nossa combinação ao presidente da Junta. De acordo?

- De acordo.


NOTA FINAL – Nesta crónica os factos narrados são fruto da criatividade do seu autor pelo que, qualquer semelhança com um eventual realidade, resultará de uma mera coincidência.