quarta-feira, 23 de outubro de 2019

A VELHINHA APOSENTA-SE...


Pelas notícias recentes ficamos a saber que vai sair do uso do exército português a velhinha espingarda G3, fiel companheira de muitos milhares de jovens compatriotas que fizeram as guerras de África entre os anos 61 e 74 do século passado.

Naturalmente, também eu, tendo andado naqueles “trabalhos”, tive por obrigatória e gratificante companhia esta “menina”- a “canhota”, como então lhe chamávamos - e, como tal, não posso deixar de experimentar alguma nostalgia quando vejo que, alguns anos depois de mim, também a fiel G3 passa à reforma.

Os dias passados e o tempo decorrido, dão azo a estas sensações a que de há muito já me habituei… É a vida das pessoas e das coisas... Inexorável.

Mas, meditando nisso, também dei comigo a pensar que, decorridos todos estes muitos anos após ter deixado a “canhota” em Luanda, possivelmente para que logo depois um outro novo mobilizado dela tomasse posse, já nem me recordo bem – quero dizer, não me lembro totalmente… - das suas diversas peças e do seu funcionamento.

Eu, que tantas vezes a montei e desmontei e que, inclusive, dei ensinamentos e instruções da amiga G3 a muitos soldados, hoje já não me recordo em pleno de todos os seus componentes. Com uma revisãozinha ia lá mas, assim a uma 1ª ou 2ª tentativa, reconheço que não conseguiria. São muitos anos de “separação” da “menina”…

Mas era uma “menina” muito fiel e fazia-nos companhia para todo o lado desde que saíssemos do arame farpado - quero dizer, do aquartelamento - e, mesmo em diversas situações lembro-me bem de a ter como dedicada companheira enquanto dormia. No Muaco, por exemplo, ficava encostadinha às paredes de madeira da barraca do destacamento e, quando passei umas noites numa pequena tenda, dando protecção a uma velha máquina de movimentação de terras, a amiga G3 “dormia” ao lado de mim e dos soldados que me acompanhavam. Também na Fazenda Lifune, de noite, cujo quarto de dormir ficava um pouco afastado da camarata dos soldados, a amiga sempre estava encostada junto à mesinha de cabeceira.  Mas nunca me foi precisa, felizmente!


Mas tive uma situação em que nossa “canhota” foi simultâneamente útil e… perigosa. Aconteceu quando tive o meu chamado baptismo de fogo em 25 de Dezembro de 67, dentro do arame farpado em Chilombo, lá no “cú de Judas”, no leste angolano. Desarmado, porque estava no aquartelamento e “maçarico…, vinha de beber umas cervejas na “venda” de um branco que ali estava  estabelecido na companhia de um fuzileiro que, ele sim, levava G3 ao ombro. Na noite escura vínhamos conversando a caminho das nossas instalações quando “elas” começaram a cantar vindas da nossa esquerda, para lá da cerca de arame farpado que ficava 50 ou 60 metros.  Porque os sujeitinhos atacantes ouviam a nossa voz no silêncio da noite escura, os tiros vinham bem dirigidos a nós e, antes de os dois nos atirarmos para o chão, o fuzo ficou apenas como gargalo da garrafa de bagaço que trazia mas, como era bem experiente naquelas andanças, de imediato destravou a G3 e começou a responder ao tiroteio e, aí, o foguetório tornou-se ainda mais intenso sobre nós. Os gajos viam os fogachos da G3 do amigo fuzileiro e tomaram-nos como alvo e, aí, o furriel “maçarico” ficou bem mais preocupado e tratou de rastejar o mais depressa possível para fugir daquela encrenca. E, felizmente, nem eu nem o meu companheiro fomos molestados. E foi assim que amiga G3 foi em simultâneo útil – muito útil! - mas também perigosa.

E pronto. Agora vai para abate depois de ter cumprido brilhantemente a sua importante missão na guerra.

Outro tanto não pode dizer-se dos homens que a fizeram usar…

NOTA FINAL – Ficam duas imagens em que a minha fiel amiga me fez companhia. Uma, quando regressamos ao quartel no dia festivo de 11 de Outubro de 1968 em que passava um ano de comissão e sabíamos da saída daquele inferno para outra zona mais calma e menos perigosa e, uma outra quando, cansados e abatidos, chegamos à segurança do aquartelamento vindos de um patrulhamento nas matas de kms que perigosamente o circundavam.

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

UMA DATA SEMPRE LEMBRADA


Na verdade, sempre que anualmente atingimos o dia 11 de Outubro, inevitavelmente vem-me à memória a mesma data de calendário mas do ano de 1967, dia em que, mobilizado, me meteram num barco (Paquete Niassa) atracado no Cais de Santa Apolónia, em Lisboa, com destino a Angola para aí ir fazer a guerra.

Denominava-se então pomposamente de “mobilização” o acto forçado de irmos combater e, para o caso de não gostarmos do “convite”, só tínhamos a fuga para o estrangeiro como alternativa... E ainda houve muitos que, durante os 13 anos que duraram as guerras em Angola, Guiné e Moçambique, optaram por essa dolorosa alternativa.

A viagem até Luanda, com duração de 11 dias, correu muito bem para os graduados (oficiais e sargentos) alojados em 1ª Classe e Turística respectivamente e tomando as refeições de optima qualidade no excelente restaurante do paquete. Eu (furriel) viajei numa cabina com mais 3 meus camaradas de igual graduação. 1 beliche de 2 camas de cada lado, corredor ao meio e sanitários ao fundo. Os oficiais, porque em 1ª Classe, talvez tivessem mais um pouco de comodidade mas pouco mais seria, penso... Juntávamo-nos e comíamos por igual no mesmo restaurante.

Mas, se nós graduados, viajávamos assim bem instalados e com boa comida, outro tanto não se passava com os pobres soldados que, dormindo em beliches encavalitados uns em cima dos outros nos fundos porões do barco, só viam luz e sol e respiravam algum ar pela abertura existente no seu centro e por onde habitualmente se fariam as cargas e descargas do paquete. Positivamente e na verdadeira acepção da palavra, os nossos soldados viajavam que… nem gado.

A ementa do jantar de despedida no Niassa
A ventilação, feita exclusivamente por essa entrada dos porões era praticamente nula, o calor era insuportável e, juntando a isto o cheiro a azedo dos vómitos de alguns mais incomodados com os balanços do barco e os fraquíssimos locais para se executar a higiene pessoal e tendo também ainda em conta que uma grande percentagem desses rapazes, vindos de pobres aldeias do Minho, não teriam muitos esses hábitos, o cheiro naqueles horríveis espaços era absolutamente insuportável. Fui lá duas ou três vezes em serviço e achei incrível que se transportasse e mantivesse seres humanos naquelas circunstâncias. Verdadeiramente inadmissível!

Mas, se isto já era horrível, o cenário ainda se agravou e complicou muito mais quando os nossos pobres soldados, aí pelo meio do viagem, sofreram uma... intoxicação alimentar. Então, foi o caos absoluto! Naquelas condições higiénicas era impossível e desumano ter rapazes ali a rebolarem-se com dores, a vomitarem e a gemerem e até gritarem de aflição e então os responsáveis autorizaram que os pobres-coitados avançassem para as classe 1ª e Turística e, no chão dos corredores, se deitassem tentando aliviar a forte indisposição e os vómitos. Foi o caos completo com os corredores pejados de rapazes que, sem se poderem conter, urinavam, defecavam, vomitavam! Horrível!
O porão com os beliches dos soldados juntos com a carga.

O caso foi tão grave e alarmante que os responsáveis chegaram a ponderar alterar e desviar a rota do paquete e atracar na Guine para que em terra se debelasse a situação. Mas, acabou por não ser necessário. Após 2 ou 3 dias em que os soldados estiveram mal, ou por um ou outro comprimido tomado, ou for força da sua juventude e da sua constituição física, robusta e saudável, começaram a registar melhorias de saúde e logo se recompuseram. Felizmente! 

Mas foi aflitivo, deveras! 

Aflitivo e até revoltante porque, à boa maneira daqueles tempos, o Comando das tropas informou as mesmas que a indisposição resultou da... “travessia da linha do Equador” associada às altas temperaturas que se registavam naqueles dias... Assim mesmo. E comunicaram isso sem rirem… Lembro-me que nós, graduados, rijos e valentes sorrimos… para dentro...

Enfim… coisas daqueles tempos.

E a 22, passados dez dias no mar, lá atracamos em Luanda a que, no caso do meu Batalhão, se somou mais uma semana de camioneta de carga, de novo que nem gado, comboio e novamente camioneta, até atingirmos Cazombo e depois Lumbala no leste angolano, bem juntinho à fronteira com a então Rodésia, hoje Zambia. 

E hoje por aqui me fico neste rememorar de um velho e árduo passado naquela malfadada guerra forçada.

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

O SR. CAPITÃO


Vindo da sua alentejana Ponte de Sor, de onde era natural, na companhia de parte da sua família mais chegada (pai, madrasta e uma irmã) o jovem de 26 anos Eduardo Alvega Capitão , o “sr. Capitão” como sempre viria a ser conhecido e tratado, chega ao Chouto em meados da década de cinquenta do século passado e fixa-se no Casal de Vale da Bezerra, propriedade que seu pai havia tomado de renda para exploração agrícola onde sobressaía o cultivo e produção de arrozais em assinalável escala.

Jovem, alto, elegante e bem parecido, de voz melodiosa, conversa pausada e fluente, a sua presença desde a primeira hora fez-se notar não só por isso mas também porque o seu contacto com todos era educado, cordial e muito cativante e, desta forma, foi-lhe fácil granjear a admiração e o apreço da população local.

Mas tinha ainda dois factores mais que, ao correr do teclado agora ocorre  lembrar e sublinhar: o nosso jovem fazia-se transportar num moderno e desportivo automóvel (Volkswagen Karmann Ghia) de cor belíssima (igual ao da imagem anexa), coisa muito rara para a época e só ao alcance de certas bolsas e, como era conhecido por “sr. Capitão”, tinha quem fizesse a analogia do seu apelido com um suposto graduado na carreira militar e era ver como a muitos e muitas (com elevado destaque para certas moças de idades casadouras...) lhes causava uma admiração muito especial…

Mas o sr. Capitão, embora assim se apresentasse no Chouto e aldeias vizinhas, não era um estouvado “play boy” como poderia imaginar-se e, antes, era um jovem sereno, ponderado e com os pés bem assentes na terra.

Com idade para procurar a mulher que deveria ser sua fiel companheira para a vida e ainda que passeando em carro desportivo, último modelo e ser para algumas um capitão (militar), factores de grande atracção, Eduardo Capitão sabia bem isso e jamais se precipitou.

Nos seus primeiros tempos na aldeia tratou de analisar as muitas e variadas amizades que se lhe apresentavam para melhor conhecer as pessoas e as coisas que o cercavam e foi fazendo  a sua selecção…

Conversava e convivia cordialmente com toda a gente sem excepção mas as visitas e conversas eram mais frequentes e, no seu reconhecimento confesso com quem firmou mais amizade foi “com os Barretos, Antero e filho Zeca”, “com os alfaiates Acácio Varela e Arlindo Texugo” e, sobretudo, com o comerciante José Azevedo.

Foi com este último que Eduardo Capitão mais se identificou “via nele uma pessoa, educada, de caracter, de cultura e muito conhecedor da vida e das coisas” confessaria e, na verdade, os dois amigos conversavam amiudadas vezes durante largos tempos naquela época, tanto mais porque José Azevedo também apreciava muito a sensatez, cortesia e educação do seu jovem amigo.

Tendo então entre 10 e 14 anos de vida nessa data este escriba, porque ouvia uma ou outra vez os diálogos travados e também por confidências posteriores do seu progenitor, ele pode hoje aqui afirmar que muitas vezes as conversas versavam sobre a intenção de Eduardo arranjar noiva e as dificuldades inerentes a encontrar jovem que se enquadrasse nos seus desejos. 


José Azevedo, então com os seus já experientes 40/45 de idade sendo mais de 20 de conhecimento dos – e das… - habitantes na região, amigo do seu amigo como ninguém, também desejava que o seu jovem e bom amigo seguisse um rumo acertado e feliz e é neste quadro que, um belo dia, aconselha o amigo (“sr. Eduardo”, como sempre o tratou):

- Sr. Eduardo, anos passados tive um grave conflito com Custódio Pinheiro e o seu filho respeitante a uma casa que esse proprietário me arrendou e que me levou a cortar relações com eles que jamais reatarei porque são pessoas com quem mais não me interessa relacionar mas isso não me impede de lhe indicar a sua filha Alice, uma boa rapariga que, estou convicto, muito provavelmente será uma excelente esposa e o poderá fazer feliz. Do pai e do irmão não gosto mas isso nada me impede de reconhecer nela uma optima pessoa! Tente uma aproximação e poderá ser feliz.

Eduardo Capitão segue o conselho do amigo, faz algumas deslocações à Ribeira de Ulme, alguns kms distante, onde a recomendada noiva vive e consegue os seus objectivos de uma primeira aceitação. Convivem, trocam ideias, namoram durante algum tempo e, passado ele, um dia chega ao Chouto junto do seu amigo e diz-lhe:

- Sr. Azevedo (como sempre o tratou) participo-lhe que eu e Alice vamos casar! Gostaria muito de o convidar para a cerimónia e para a boda mas não me atrevo a isso porque sei a sua resposta face à sua incompatibilidade com os meus futuros sogro e cunhado, mas creia que é com muita pena que não verei o sr. Azevedo naquela data única da minha vida que o amigo, com o seu caracter e saber, ajudou a concretizar.

José Azevedo reconhecido e certamente reconfortado, abraça o amigo Eduardo e deseja-lhe felicidades!

Os anos passaram, José Azevedo partiu em 1978 muito prematuramente e o sr. Capitão viu também partir a sua amada Alice em 2010, depois de uma vida em conjunto de muitos anos bons e felizes e, agora, com quase 91 anos, raciocina em pleno, ainda passeia, convive com familiares e amigos, frequenta com entusiasmo a Universidade Sénior da Chamusca, vila onde mora, navega na internet com progressiva evolução no seu conhecimento, conduz a sua viatura (que não o desportivo carro dos anos 50, claro) e continua a ser o mesmo senhor de então: educado, correcto, cordial e amigo! A pé desloca-se amparado a uma bengala, se bem que a saúde não o incomode sobremaneira “a não ser os ouvidos, porque não me conseguem acertar com os aparelhos...” confessaria a este escriba que conhece desde adolescente dos seus belos tempos no Vale da Bezerra.

Para além de tudo isto, o sr. Capitão faz questão de estar presente no Chouto nos diversos eventos organizados pelo Grupo na net CHOUTO – NOSSA TERRA, NOSSA GENTE, como atesta a imagem junta registada por ocasião da festa do 2º aniversário do Grupo, onde contou a este seu amigo alguns detalhes da sua muita amizade com José Azevedo onde sobressai o seu aconselhamento da noiva, facto que desconhecia, consentindo que o divulgasse e onde teria a oportunidade de confessar: 

- Seu pai teve influência no meu casamento! A sua amizade e caracter permitiu-me arranjar uma excelente, amada e saudosa esposa!