segunda-feira, 24 de maio de 2021

BOAS NOTÍCIAS - III "RECAUCHUTAGEM" FOI EFICAZ!


“As lesões surgidas foram eliminadas!”

Estas palavras bonitas e mais que agradáveis, ouvidas hoje da boca do doutor que há anos me acompanha nesta malfadada maleita na figadeira que me incomoda, soaram-me como que um hino aos ouvidos e aos sentidos.
 
Disse-o observando o resultado da TAC efectuada 4 semanas depois da quimioembolização de 19 de Abril e provocaram-me o alívio e o prazer que se adivinha.

A ansiedade e até preocupação em saber se a eficácia teria sido plena e se tenho futuro por mais um tempinho, parece-me lógica e natural e, ouvir de quem sabe, que a coisa funcionou e está debelada ainda que temporariamente, trás algum sossego por mais um período de tempo que irá até novo exame.

Mas ainda bem que assim foi porque este último tratamento foi por demais doloroso e difícil e assim esta boa notícia soa como que a uma recompensa pelo momento vivido.

Seguir-se-ão novas intervenções e, certamente, novas dificuldade mas, há que ter calma e paciência, coisa a que, feliz ou infelizmente, já me habituei.

E, depois, depois se verá... 
  

segunda-feira, 3 de maio de 2021

AS "HABILIDADES" DO GARCÊS

 A pobre Maria de Deus bem que se lhe lamentava todos os dias e a todas as horas:

- Manel, não tenho um pó de café, um grão de arroz, uma côdea para dar aos cachopos… Nem dinheiro, pouco que seja, para ir à loja do sr. António, dar algum para baixar no rol e trazer mais qualquer coisinha para calar o choro dos miúdos…

Manuel Garcês ouvia, bem sabia que assim era mas também conhecia a realidade: por toda a freguesia de grandes propriedades, os lavradores tinham já os seus trabalhadores contratados ano a ano e restava aos que dessa situação não viviam, estar pelas tabernas da Choça aos domingos de tarde na esperança que um patrão surgisse e acordasse com quem escolhesse pela sua vitalidade um diazinho ou dois de jorna. Todavia sobre ele corria já na Choça uma certa suspeita de que tinha como que um íman na ponta dos dedos das mãos e, por isso, a escolha pelos seus serviços nem sempre era a mais desejada... Havia quem tivesse receio. Valia-lhe então o fraco “gancho” da Junta com quem acordara o pequeno compromisso de todas as noites acender os pouco mais de meia dúzia de candeeiros a petróleo da via pública, coisa que lhe trazia pouco proveito ao fim do mês, a que juntava o escasso ganho de uma vez ou outra abrir no cemitério da terra a cova para sepultura de alguém que partira desta para melhor. Mas, mas era proveito de pouca monta. Um, dois mortos por mês se tanto e já era muito.

Assim, ao Manuel Garcês, homem para mais introvertido e de poucas falas, restava-lhe aceitar de vez em quando a realização de um ou outro biscate de meio-dia, um dia, numa horta vizinha a semear ou arrancar umas batatas, plantar umas couves, semear uns feijões e pouco mais.

Embuchara a companheira por 4 vezes e ao longo dos dias ouvia-lhe agora os lamentos, numa situação que ele também bem sentia, de não ter a massa, o arroz, o feijão com que desejava encher e aquecer os estômagos do pequeno rancho de filhos… Os vizinhos viam a situação e ajudavam um pouco era verdade mas, como eram igualmente pessoas de parcos recursos, a ajuda amenizava um pouquinho o problema mas não o resolvia.

Foi então que o Garcês começou a ponderar e a estudar a forma de arranjar algum proveito com pouco trabalho…

Precisava de azeite, feijão? Sabia onde os encontrar e não seria muito difícil, entendia. Verdade que havia dois cães que, à solta pelo Casal faziam a sua guarda mas os animais conheciam-no, ele sabia os seus nomes e, com a ajuda de uma pequena côdea que levasse no bolso, rapidamente dariam ao rabo e o percurso ficaria livre…

E se o pensou, rápido o executou.

Numa fria, chuvosa e negra madrugada de Inverno, na sua residência a meio do quarteirão da rua, José e Maria algo extenuados pelo tentar aliviar umas colicazinhas do seu pequeno rebento de berço, procuravam no leito pegar no sono quando Maria começou a ouvir, no silêncio da noite, os passos pesados e firmes na calçada de alguém que, rente à sua janela do quarto, iria a passar…

A mulher tocou levemente em José, que entretanto pegara no sono : “Zé, escuta!...”

O marido escutou, ouviu os pesados e encharcados passos que se afastavam em direcção ao cimo da rua e logo palpitou:

- Olha, não a vai fazer, já a fez!...

E logo pela manhã, na pacata aldeia da Choça, se ouviria a notícia: 

- Assaltaram o celeiro do Casal do Onofre de Baixo e roubaram 2 alqueires de feijão branco, 2 alqueires de feijão frade e 2 garrafões de azeite!

Maria de Deus não aprovava mas resolvera calar-se e nem ao marido contestar: sendo mau e feio, bem mais lhe custava ouvir os choros dos cachopos de barriga vazia. Era feio, estava mal, mas…

Nos dias seguintes falava-se, falava-se no assalto mas, pouco a pouco tudo a água do ribeiro levaria e seria passado.

Correram os dias e as semanas e o Garcês, atento ao “diz-se, diz-se” acha que deve parar, esperar que a água do ribeiro leve a “enxurrada” e, para além de uma covita ou outra em que os seus serviços eram requisitados no cemitério, ao cair dos dias prosseguia no seu ritual de, escada às costas, candeeiro ali, candeeiro acolá, petróleo no depósito e chama na torcida. Uma vez ou outra - vá lá saber-se porquê?… - um pouquinho menos de combustível no da esquina da loja do sr. António no largo principal da aldeia e nada mais digno de nota.

Nada mais, não é bem assim… Na realidade Ti Barnabé, quando pelas 5 da matina passava pelo largo a caminho de ordenhar as ovelhas já uma vez ou outra notara e diria ao sr. António:

- Quando ao romper do dia vou para o bardo ordenhar as ovelhas, já tenho reparado que o candeeiro ali da rua está aceso, o da padaria também e o da Rua da Nascente igual mas, por vezes, o da esquina da tua loja, já está apagado.

O sr. António ouvia o reparo uma, duas ou três vezes mas, como à meia-noite fechava, ia para casa e via o candeeiro de pavio aceso, pensava numa qualquer distracção no abastecimento dessa tarde e depressa esquecia. Coisa sem importância.

Tratava-se da única mercearia da aldeia. Sempre muito abastecida e bem recheada, fundada e gerida pelo sr. António e depois também pelo filho Zé, feita que foi a sua 4ª classe e que, embora ainda rapaz, já mostrava queda para o negócio, tinha considerável clientela, se não mesmo muita e com o pequeno café contíguo, ligados por passagem de serviço no seu interior, situada em destacado quarteirão no largo principal da terra, era o mais considerável comércio da pequena aldeia. 

E a vida da pacata Choça, numa terra onde nada acontecia, decorria sem novidades de maior, sossegada, calma. Homens e mulheres trabalhadores rurais labutavam todos os dias agarrados à enxada, à foice, à picareta e à pá e, chegados ao lar, quantas vezes noite fechada, era a ceia para tratar, os miúdos para cuidar e a cama para repousar o maçado corpo. E, no dia seguinte, idem-idem, aspas-aspas, num ritmo só  quebrado aos domingos, em que o merecido descanso lhes era permitido.

O sr. António, dia a dia ia flanqueando as portas da sua loja, fornecendo o arroz, o açúcar, a massa, o feijão e o café e, num hábito já tornado obrigatório, tudo ia para o rol. “Assente, sr. António! Assente!” Ele isso sabia e também sabia que, finda a semana, recebidos pelo trabalhador os magros escudos da semana devida, ele ali se dirigia, mandava apagar ou abater no rol e a cena seguiria para novos capítulos. Habitual, costumeira, tradicional, calma e séria.

Tudo, assim, pacatamente decorria quando, subitamente e depois de sem surpresa abrir a porta do estabelecimento, para seu espanto encontrou a lata do café em pó destapada, de tampa ao lado, destapada e com algum café vertido sobre o balcão e, para sua nova surpresa, viu que havia também derramada do grande gavetão uma porção de açúcar, igual derrame no gavetão do arroz e até no do feijão encarnado... 

Chamou o filho:

- Zé, como raio verteste este café e deixaste ontem a lata por fechar? E como verteste para fora dos gavetões tudo isto que aqui vejo?

O Zé, estupefacto;

- Eu, pai? Eu não fui. Juro!

Calou-se, observou melhor à sua volta e depressa entendeu que havia recebido a visita de um “rato” noturno. Mas como, se a porta estava fechada à chave, língua corrida, sem nada que provasse o arrombamento? Intrigante. Intrigante, sem dúvida. Disse ao filho que se calasse, ficasse com se nada tivessem reparado e no futuro logo se veria… 

Mas o sr. António contou pelo menos à esposa e mais um familiar chegado, dando a mesma recomendação de sigilo. Desconfiava na verdade do Garcês mas… não tinha provas.

O nosso “rato” deixou passar a onda, esperou que tudo esquecesse e, passados um meses, sem que os lamentos da sofrida Maria de Deus abrandassem com a visão e o sentir dos filhotes implorando comida, o seu companheiro pensou para com os seus botões:

- Mas, para quê ir e vir tantos metros rua abaixo, rua acima se, aqui, ao virar da esquina, está o celeiro onde o merceeiro António guarda os stock mais vastos e pesados e que, pouco a pouco, na medida das necessidades, vai levando aos poucos para a loja? É só andar meia dúzia de passos, dobrar a esquina e fazer a “colheita”…

E, tendo esperado por noite escura, abriu com a habilidade que adquirira a fechadura da pesada porta de madeira, serviu-se de farinha e azeite, o que mais ali armazenado lhe convinha e, sorrateiramente, saco às costas e vasilha na mão, deu a volta à esquina e, segundos depois, estava em casa.

Tudo parecia ter corrido pela melhor forma mas, todavia, não reparara numa pequenina/grande falha cometida: ao mudar a farinha de um saco para outro derramara uma considerável porção e, para agravar a falha, igual derrame acontecera quando retirava o azeite da grande talha que, por mor das suas dimensões não poderia levar às costas e, por isso, retirara uns quantos litros para uma vasilha que por ali encontrara. Retirara mas, desastradamente, uma boa porção vertera para o chão cimentado.

A farinha com a mistura do azeite formara uma papa que o nosso homem inadvertidamente pisou várias vezes, tendo saído sem se aperceber do rasto deixado. E o rasto era um “carreirinho” direitinho, direitinho à porta da sua habitação…

No dia seguinte, pelas 9 horas, António a caminho da loja para a abrir ao público, porque forçosamente passava pela frente do celeiro, deu-lhe um baque no coração quando viu o surpreendente espectaculo das pegadas brancas de farinha e azeite na calçada, dobrarem a esquina e seguirem direitinha para a porta do vizinho Garcês…

Não! Assim, não! Era demasiado! Abusivo, descarado, ofensivo, muito ofensivo!

Mas o sr. António não foi pedir explicações, não. Pensou: Enervar-se-ia muito, seria ofendido, sairia a perder. Mas o assunto desta vez não poderia ficar assim, sem consequências.

Era um dia, de dois da semana em que a patrulha da GNR visitava a Choça e ali pernoitava. Esperou que chegassem e de imediato lhes apresentou a queixa. Os guardas logo decidiram que de imediato iriam ao local em busca dos géneros mas o sr. António pediu-lhes que não o fizessem. Horas antes tinha caído uma chuvada, o rasto já pouco se notava, aquilo era uma miséria pegada e de pouco adiantaria. Pretendia apenas que o chamassem, lhe dessem um valente “aperto” e podia ser que o homem parasse em definitivo com as suas visitas noturnas.

Foi o que fizeram. Chamaram  o Garcês ao posto que começou por negar tal façanha mas, posto ao corrente do que os guardas sabiam sobre o rasto deixado, testemunhas do mesmo e tanto mais que ele próprio já notara que tinha uns pequenos restos de massa branca em redor das solas das botas, calou-se de imediato. Confessou o roubo e ouviu das autoridades a natural sentença: que nunca mais lhes surgisse qualquer queixa dele mexer em coisa alheia. Se tal sucedesse teria a certeza que passaria umas noites atrás das grades.

O nosso Garcês ouviu, compreendeu a ameaça e decidiu que, das suas “habilidades”, não mais se ouviria falar. 

E assim aconteceu ao longo do tempo, não havendo dúvida que a lição lhe tinha serviço de emenda.

Mas, - nestas coisas há sempre um “mas”… -, uma bela manhã quando o sr. António e o filho Zé se apressavam para abrir a pesada e velha porta de madeira do estabelecimento, usando a comprida e volumosa chave de ferro castanho, barraram com a dificuldade de fazer recolher a língua da mesma. A chave entrava sem problema, dava ¼ de volta mas... parava ali e não recolhia a língua. Insistiram, insistiram, foram buscar uma chave de fendas que introduziram na ranhura da fechadura, pararam alguns vizinhos passantes e tentaram ajudar mas... nada. A danada da língua não recolhia e não flanqueava a porta.

Já desesperavam pai e filho quando, subitamente, António ordena aos presentes:

- Esperem. Não forcem mais. Vou ali e já resolvo o problema.

Dito isto, o sr. António vira costas e segue calçada fora até ao cimo da rua onde desaparece. Todos se olham curiosos na expectativa do que iria ele fazer para solucionar a questão?…

Eis quando, passados curtos minutos, o veem surgir acompanhado do Garcês que, de passada algo lenta por mor da “quebradura” que ultimamente lhe provocava forte inchaço no baixo-ventre e lhe dificultava os movimentos, vinha em auxílio do comerciante.

Garcês chegou, tirou do bolso um pequeno arame, pediu que lhe passassem a chave de fendas e que se afastassem um pouco; operou escassos instantes com a chave e o arame, introduziu a chave de ferro na fechadura e... fez correr a língua. Abriu a porta.

Todos se olharam pasmados da facilidade mas, Garcês nem os mirou. Virou costas e, passo lento retornava já em direcção à residência, quando o sr. António o chama:

- Manel? Espera aí homem. Quanto te devo?

- Não deve nada, sr. António.

- Não? Está bem. Mas, olha, só um pequeno acordo vamos fazer: de hoje em diante estás dispensado de acender aqui este candeeiro da esquina da minha loja. Eu mesmo trato dele e vou falar dessa nossa combinação ao presidente da Junta. De acordo?

- De acordo.


NOTA FINAL – Nesta crónica os factos narrados são fruto da criatividade do seu autor pelo que, qualquer semelhança com um eventual realidade, resultará de uma mera coincidência.