segunda-feira, 29 de julho de 2019

VELHOS NACOS DO MEU CHOUTO ANTIGO (3)


A FEIRA DE 1968 


Nesta sequência de apresentações de velhos nacos do meu Chouto Antigo relativos a extractos retirados da correspondência recebida durante a minha permanência em Angola por ocasião da minha comissão na Guerra Colonial deixo hoje a 3ª pérola dessas narrações.

Conhecedor da minha paixão pela terra natal e sabedor de quanto apreciava as notícias das ocorrências locais, o meu solicito pai como já o confessei noutras situações anteriores, tudo me narrou durante esses mais de dois anos de ausência forçada nas terras africanas.

Desta vez e em aerograma datado de 1/7/1968, cujo extracto aí deixo, é descrita a passagem da Feira de S. Pedro nos dias anteriores, o seu ambiente e as suas incidências onde sobressai a evidente decadência na frequência de visitantes, a inevitável referência à falta da energia electrica e sobretudo a actividade fraudulenta dos vendedores da “banha da cobra” que então se aproveitavam da ingenuidade dos incautos locais para se apropriarem de proveitos ilícitos.

Imaginando a dificuldade na leitura da caligrafia deixo a “tradução”:

“ É hoje 2ª feira, escrevo-te para te dizer que assim se passou a feira, sem nada de especial a registar, a não ser um grande calor que andamos para morrer. Na feira, mesmo na hora de mais movimento pouca gente se via porque era impossível lá andar. Os feirantes dizem que fizeram algum negócio mas foi só rente à noite e ontem, domingo. Se tivessemos electricidade à noite alguma coisa faziam, assim paciência. No dia da feira pouca gente aqui veio para casa porque da Parreira, Marianos, Ulme e Chamusca não vieram à feira. De onde veio alguém foi do Semideiro e ainda foi o que valeu. Não veio carrossel, umas barraquitas de jogos e mais nada. Mas a feira é sempre jeitosa e ainda tinha muitos feirantes, muitas barracas de fatos feitos, etc. Mas tudo muito sossegado porque não havia qualquer música. Ontem é que estiveram os propagandistas a dar navalhas, sabonetes, etc. As pessoas iam recebendo todas contentes, eles por vezes diziam “agora é vendido”, recebiam o dinheiro e depois voltavam a restitui-lo, até que caíram com 100$00 para um xaile que pode valer 20 ou 30$00, julgavam que eles voltavam a dar os 100$00 mas enganaram-se. Eles foram entretendo a malta a dar-lhe uns sabonetes enquanto outros arrumavam a mercadoria no carro e depois piraram-se. A malta ainda lhes quis cercar o carro mas eles meteram para baixo para embalarem o carro mais rápido e depois passaram para cima em grande velocidade a dizer adeus com a mão.”  

E é assim, por vezes dando volta à velha correspondência de meu saudoso pai, saboreando estarrecido estas deliciosas narrações e “alimentando-me” de algum passado, que vivo muitos dos dias de hoje…

E gosto!

sexta-feira, 12 de julho de 2019

GUERRA COLONIAL - PAI, SOFRE...


É sabido que as guerras, sendo elas quais forem, sempre trazem, seja aos que nelas participam, seja aos seus familiares e amigos, a dor, o sofrimento, o medo e, tantas vezes, a morte. Todas são assim e a Guerra Colonial, que sofremos, não fugiu à regra.

Medo. O medo que existia das consequências mais funestas que eventualmente pudessem advir tínhamos nós, envolvidos no teatro de operações e tinham também os nossos amigos e sobretudo familiares mais chegados, nomeadamente irmãos e pais.

E é sobre esse medo que hoje me proponho escrever, passados que estão alguns instantes sobre a minha sempre retemperadora visita feita a correspondências trocadas nesses recuados tempos da obrigatória vida militar e da forçada guerra em Angola.

Se tenho poucas memórias desse medo sofrido por minha doce mãe, porque era analfabeta e não podia exprimir-se por escrito, outro tanto não posso dizer de meu saudoso pai que me escrevia todas as semanas, uma, duas e em determinada ocasião talvez mesmo por três vezes, sempre de forma detalhada e particularmente expressiva. Meu pai escrevia muito bem e reler a sua correspondência é um prazer pessoal francamente gratificante.

Falava-me de tudo o que se passava na aldeia e isso terei de abordar numa próxima crónica porque é deveras interessante a forma como abordava diversas ocorrências da terra mas, nesta, quero relembrar e documentar o muito medo sofrido pelo meu querido progenitor, medo não surgido somente durante a minha estadia na guerra mas que nasceu muito antes, logo quando fui incorporado no exército e que se agravou depois com a inevitável mobilização para a contenda.

Eu, na altura, como já narrei em anteriores crónicas, apaixonado pelas coisas da comunicação social, escrevia em vários jornais, sendo o mais saliente o “Diário de Notícias”. Tudo o que surgia digno de nota na região eu mandava para publicação e algumas crónicas e reportagens mereceram várias vezes apreço e elogio dos homens do DN e, quando esses escritos resultavam em exclusivos na imprensa nacional, recebia mesmo bons elogios pela minha actividade, deixando aí dois exemplos de missivas recebidas..






















Meu pai sabia desses louvores e, olhando para isso, que se lembra o bom do pai sofredor com o filhinho prestes a embarcar para a guerra? Sem me dizer absolutamente nada – certamente esperançado na surpresa que me faria com a feliz notícia da minha desmobilização, penso eu…. - e sabedor da muita influência da direcção do DN na política nacional de então - o “Diário de Notícias” era o jornal do regime -, resolve escrever aos homens argumentando e pedindo mais ou menos por estas palavras: “Já que vocês gostam, apreciam e elogiam tanto o meu filho pelo que escreve para o jornal, não percam esse serviço e intercedam para que ele seja desmobilizado da guerra!”.

Assim, mais palavra, menos palavra porque citado de memória, era o que José Azevedo queria para o filhinho e que constava da carta cuja cópia me mostrou posteriormente…

Se antes de a enviar me tem confessado os seus intentos tê-lo-ia demovido e acordá-lo-ia do seu sonho, mas não o fez… Era sabido e aí ele tinha razão, que os homens do jornal (administração, direcção e jornalistas) tinham muita influência na política de então mas, muito antes disso, eles eram principalmente grandes e mesmo enormes seguidores e defensores das políticas de Salazar e Caetano e por isso entendiam que os territórios africanos eram parte integrante de Portugal que havia que defender a todo o custo pelo que, desta forma, quantos mais jovens para África melhor e, desmobilizar um só que fosse, era pecado de lesa-majestade.

E, como era inevitável, foi a resposta que Zé Azevedo teve na volta do correio e foi quando da sua correspondência tive conhecimento e isto porque, vinda da direcção do jornal recebeu o meu pai uma carta contendo uma verdadeira e suposta lição de amor pátrio, que o indignou muito, missiva que me estendeu para ler quando cheguei a casa no fim-de-semana seguinte à sua recepção, dizendo-me entre indignado e mesmo ofendido:
- Lê os que estes gajos me responderam depois de eu lhes pedir para te livrarem da guerra?.

Foi então que me contou todas as suas pretensões ao escreveres-lhes, resultante confesso do muito medo que tinha do amado filho embarcar para a guerra.

Ah e o que dizia a carta dos homens? 

Pois… o esperado: Que ele deveria ter muito orgulho do filho que tinha! Que deveria ter muito orgulho e estar feliz por ele ir para a guerra defender a nossa querida pátria dos ataques traiçoeiros dos seus inimigos! Que era um dever honroso de todos os bons portugueses! Que ele haveria de lutar, defender o nosso país e regressar de saúde e feliz pelo dever cumprido!

Pois!… Só acertaram na questão da saúde… 

Então, se esta vivência agora narrada e algo patusca foi vivida antes da partida para a guerra, tenho mais duas situações ocorridas durante ela e que aqui quero registar documentando também com a correspondência enviada pelo meu saudoso amigo de sempre e que são testemunhos do enorme e compreensível medo com que viveu todos aqueles anos.

A primeira é, em simultâneo, um misto do falado medo que sentia e também da forma como o clero religioso sempre esteve comprometido e colaborante com a política de então dos regimes de António Salazar e Marcelo Caetano, numa colaboração e cooperação sempre bem visível por tudo e todos. Mas,com factos reais, a consciência disso é bem maior...

No pequeno trecho do seu aerograma, escreve o assustado pai: 


“Há dias, tinha o padre Zé abalado daqui há poucas horas, ouvi parar à porta um carro, era ele com um papel na mão e diz-me: “venho numa missão muito ingrata morreu um rapaz das Folgas e telefonaram-me para mim, vou dizer à família.” Podes calcular, antes dele dizer “um rapaz das Folgas”, o meu coração parece que saiu do seu lugar. Não sei o que isto quer dizer, volta e meia pregam-me cada susto que me deixam por momentos arrasado. Não lhe disse nada e fui com ele dar a triste notícia aquela gente que andavam em cima de uma oliveira a apanhar azeitona. Fui eu que os mandei descer porque o padre não sabia o que fazer. O rapaz morreu em Moçambique mas de doença no hospital.”.

E, se este episódio é bem triste e não justifica o mínimo sorriso, atestando o enorme medo sentido pelo meu tão saudoso pai (admirando-me todavia como o desatento padre Zé abordasse o assunto daquela forma, esquecendo que o fazia a um pai que também tinha o filho na guerra...), outro tanto não aconteceu na outra situação que até deu para rir, embora também nos fale de uma morte porque, para nós, rapazes novos embrenhados na guerra mas conhecedores da realidade que nos cercava, foi na altura um bom bocado hilariante… Malta nova… 

Passo a contar:

Desde a formação do Batalhão e depois durante toda a guerra tive como companheiro diário, como já escrevi em anteriores crónicas, o Joel Costa, hoje escritor e conferencista mas naquela data cantor de ópera no Coro do Teatro Nacional de S. Carlos, coisa que o meu pai sabia por, certamente, uma ou outra vez lhe ter contado dado que o Joel era um dos nossos mais cultos, esclarecidos e personalizados camaradas. Porque convivíamos e sofríamos as mesmas agruras e sempre tivemos um excelente relacionamento, era natural que por vezes escrevesse sobre o amigo Joel e por isso o meu pai sabia da sua existência.

Aconteceu então que num determinado dia no leste angolano recebi como correspondência do meu pai não os habituais aerogramas mas, dessa vez, um carta. Abri e logo me caiu aos pés um recorte de jornal com o anúncio da morte em combate de um furriel. O nome do infortunado era Joel, com um determinado apelido que não me acorre e possivelmente não voltarei a saber porque, vá lá saber-se porquê, a carta não me surge junto da correspondência de então… Eu, que faço questão de tudo guardar, não sei onde estará a dita carta mas lembro-me bem que o recorte do jornal dava conta da morte do dito Joel, informando que o falecido era filho de determinada pessoa cujo nome me passou, pessoa que era na altura, informava o anúncio, director da Orquestra da então Emissora Nacional, sendo este porventura o detalhe, penso, que levou o meu pai a confundir com o Coro do S. Carlos...

E então, que escrevia o meu doloroso Zé Azevedo na carta? Mais ou menos estas palavras, que cito de memória: “Meu querido filho, tu dizes sempre que estás numa zona calma, que não tens sofrido ataques dos turras mas o meu coração sempre me disse que não é assim e a prova aqui está neste recorte do “Diário de Notícias” que te envio com a notícia da morte em combate do teu amigo Joel. Fiquei muito triste e aflito porque imagino o que passaste e como estarás e já falei com o padre Zé para celebrar uma missa por alma do teu amigo. Além disso vou escrever aos pais, dizendo quem sou, informando-os da missa e apresentando-lhe as minhas condolências.”

Dá para imaginar o que senti a ler tamanha dor e simultaneamente tão grande confusão do meu querido pai, né? De imediato contei a situação ao Joel e acho que também a outros camaradas e rimos, claro. Rimos bem. Malta nova e despreocupada dá para imaginar as divertidas risadas...

Apressei-me a esclarecer devidamente o meu pai e não deixei de lhe confessar que rimos com a sua confusão, coisa que depois me arrependi porque talvez não gostasse de saber que rimos com a sua aflição. Mas o mal estava feito, vê-se pela resposta que deu que aí incluo que talvez não tivesse apreciado muito o nosso riso e logo lhe respondi que rimos porque estavamos todos muito bem, tudo calmo e só esperando que o tempo passasse. Enfim, mentindo um bocadinho, tentei sossegá-lo e animá-lo.

Passados mais uns dias recebi num aerograma a informação que os pais do inditoso furriel lhe responderam agradecendo a atenção e a missa mandada celebrar e descrevendo como ocorreu a morte do filho. Fica também aí um recorte da correspondência.

Histórias reais, vividas e bem sentidas na hora e que, hoje, francamente, provocam-me  e eventualmente poderão provocar a quem as lê um misto de hilaridade e tristeza porque “tudo corre bem quando acaba bem” e porque foram vivências com muitos queridos familiares e amigos que infelizmente há muito não nos dão a alegria e o prazer da sua presença…

A vida, tal como ela se nos apresenta; a morte tal como inevitavelmente a temos de viver...