quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

VIVER (MUITO) POBRE

Penso que vermos uma imagem, como a que retirei da net, de alguém desconhecido
mas que nos mostra ser uma mulher carregando para casa um braçado de lenha seca, podendo parecer algo estranho para os citadinos jovens de hoje, ela não é de todo minimamente invulgar para quem, como eu, nasceu e cresceu numa aldeia.

Na verdade, em tempos que não distam dos actuais tanto quanto isso, nas aldeias de Portugal era vulgar, familiar, assistirmos a pessoas que faziam fogueiras nas lareiras de suas casas para seu aquecimento e confecção dos alimentos, em muitos casos porque havia que poupar no gasto do petróleo do velho e rudimentar fogareiro e tanto mais que o moderno gaz em garrafa ainda não havia chegado.

Falo do que bem me recordo, nos mais recuados anos da minha infância e juventude nas décadas de 40 a 70 do século passado na minha aldeia Natal, pequena e pobre, ali no extremo da fronteira sul do Ribatejo com o Alentejo.

O Chouto (Chamusca), encravado no meio de grandes propriedades agrícolas e onde a quase totalidade dos seus habitantes não possuía um metro quadrado de terreno, médio ou pequeno que fosse, que pudesse cultivar e daí retirar alguns bens para ajuda da alimentação, vivia quase exclusivamente da agricultura latifundiária e, para além dos que conseguiam um serviço permanente nas grandes propriedades, onde usufruíam duma escassa remuneração mas, ainda assim, garantida semanal ou mensalmente, beneficiavam todavia de casa gratuita e de um espaço para horta onde cultivavam muitos alimentos para seu consumo.

Mas, e os outros? Os que não tinham trabalho certo viviam da pobre e curta jorna em oferta e procura para pequenos trabalhos em quintais, hortas, searas, etc, feita nas tardes de domingos nas tabernas da aldeia onde eram procurados. Era aí a chamada "Praça da Jorna" da minha terra.

Acontecia por isso que, como algumas poucas excepções de comerciantes e pequenas profissões (pedreiros, carpinteiros, alfaiates, sapateiros) todas as casas da restante população eram realmente muito pobres, frias, inóspitas e de fraquíssimas condições de habitabilidade.

Lembro-me de muitas casas de telha vã, com cortinas em vez de portas interiores, janelas exteriores de taipais de madeira sem vidros e, até uma ou outra, bem me recordo, de piso em… terra batida, que o escasso dinheirito não chegava para adquirir cimento para as cimentar.

Ainda relacionado com a habitação e pensando naquela que os trabalhadores tinham nas grandes propriedades e, sendo verdade que a maioria dos lavradores a forneciam gratuitamente, numa reportagem que fiz para o “Jornal da Chamusca”, em 1973, encontrei e por incrível que pareça, uma triste realidade: o trabalhador, não obstante o parco salário e géneros (mantas anuais e cereais), construía ou mandava construir a casa e, se deixasse a propriedade, a casa era do patrão…

Por tudo isto, nessas recuadas épocas, vivia-se pobre, muito pobremente e tínhamos muitas crianças que andavam descalças pelas ruas térreas e empedradas, usavam velhas calcitas remendadas várias vezes e já herdadas de irmãos mais velhos e que, descalças, iam para a escola, algumas percorrendo assim, de Verão e de Inverno, sem calçado, largas distâncias desde as suas residências em povoados em redor da aldeia até à escola primária e, de certo, quantas e quantas vezes de estômagos vazios.

Recordo-me ainda que, na década de 50, a Cáritas Portuguesa (penso que o fez directamente, a Cáritas, porque não estou a imaginar Salazar e o seu governo, com a sua política autoritária, sobranceira e de isolamento mundial, tomar essa iniciativa...) conseguiu junto dos EUA umas grandes e importantes ofertas de muitas toneladas de leite em pó e queijo enlatados para ajudar a matar a fome dos portugueses. A Cáritas, como organização de cariz religioso, entregou às dioceses católicas a missão da sua distribuição que, por sua vez a passaram para os párocos e, estes, nas localidades onde não residiam e porque melhores conhecedores da pobreza nas suas terras, a cidadãos dessas terras. Na minha aldeia e porque bem conhecedor da realidade local, foi solicitado a meu pai que o fizesse e bem me recordo de situações de pobreza que meu pai nos contava à mesa e dos problemas de consciência que sentia para o fazer equitativamente não querendo ser injusto para quem quer que fosse, beneficiando alguém num eventual prejuízo de um seu vizinho. Era muito difícil não surgir um ou outro reparo e bem me recordo como o meu saudoso progenitor se sentia penalizado quando lhe soava que tinha oferecido a A mais um pedaço de queijo do que a B, mais uns gramas de leite a um que a outro.

Mas, tão bem quando foi possível, tudo foi distribuído várias vezes durante uns anitos (numa das vezes, para maior auxílio, chegaram também roupas ainda em excelente estado, ou até mesmo sem qualquer uso detectável) e não tenho dúvida que muitas crianças e adultos beneficiaram dessa graciosa alimentação e a todos ajudou a crescer, a viver e a minorar o seu  sofrimento do dia a dia. Sim, porque a quem vive e sobrevive do quase nada, quem nada tem para pôr na mesa na hora de alimentar os filhos, tudo o que lhe vem, escasso que seja, sempre é bem-vindo e sabe-se lá com que gratidão é recebido...

Enfim, a crónica já vai longa mas achei-a necessária para registar para a posteridade as dificuldades económicas vividas e sentidas por larguíssima percentagem da população portuguesa, aqui com a minha terra em particular, sobretudo naqueles recuados anos do pós-guerra e seguintes, quando a recuperação industrial, comercial, económica e financeira acontecia aceleradamente por toda a Europa mas onde em Portugal tal não sucedia em virtude da opção neutral e isolacionista de Salazar que nos livrou de muitas mortes na guerra, consoladora realidade, mas onde igual recuperação infelizmente não aconteceu por via da sua política de “orgulhosamente sós”...

2 comentários:

Adriano Cruz disse...

Gosto muito de ler estas evocações ! Já comentei algumas vezes , mas os comentários não aparecem , por falta de conhecimento da minha parte nesse procedimento ! Estou a tentar mais uma vez...

Victor Azevedo disse...

Obrigado, Adriano, pela tua visita e pelo acompanhamento que tens feito destas minhas crónicas evocativas dos velhos tempos que ambos vivemos!
Um abraço, esperando que voltes mais vezes!