domingo, 10 de outubro de 2021

GUERRA COLONIAL - EXCESSOS

Por incrível que pareça e não obstante terem já passado mais de 50 anos, continuo nos dias de hoje periodicamente sonhando com tão difíceis dias vividos na Guerra Colonial entre 1967 e 1969, para além das lembranças que continuamente me afloram o espírito e foi assim que recentemente dei comigo a recordar os excessos de violência – bastas vezes gratuita e desnecessária, diga-se… - em casos de que tive conhecimento na hora, como o de uma “matança” gratuita (tenho mesmo um magnífico texto cedido por um amigo e camarada que a acompanhou dando-me a oportunidade de o publicar, coisa a que me recuso por o achar demasiado violento e mesmo sangrento…) e, noutros – ou mais correctamente, noutro – em que participei obrigado pelo meu superior. Na verdade, também eu fiz parte do grupo dos que estupidamente exerceram violência excessiva e desnecessária, se bem que, neste meu caso, bem fizesse ver ao alferes comandante das nossas forças que estava a lavrar num tremendo e desnecessário erro…

Aconteceu no distante e inóspito leste angolano. Coisa aí por volta de Abril de 1968.

Com meu pelotão, num total de aproximado de vinte e poucos homens, estávamos adidos (“hospedados”) nas instalações de uma Companhia do nosso Batalhão que não a nossa (localizada a mais 100 kms da nossa zona de acção) comandada por um Capitão, velho e experimentado cabo de guerra a cumprir a sua 2ª Comissão e que, não obstante a maquinaria que protegíamos no arranjo da picada operasse perto das suas instalações, sabedor e astuto como era, tratou de junto do Comando do Batalhão preservar o seu pessoal e “empurrar” eu e outros infelizes que, comandados por um militarmente ignorante e inexperiente capitão miliciano, mobilizado e arrancado das suas aulas de professor de Matemática, era como que um “pau mandado”, se não mesmo capacho, dos astutos militarões que comandavam as restantes companhias. Qualquer trabalho mais esforçado e complicado, lá avançavam os pobres coitados da 3ª Companhia, para além de, claro, o haverem instalado e aos seus subordinados, na zona mais complicada da área coberta pelo Batalhão…

No leste angolano, junto à fronteira com o Congo dávamos protecção militar ao pessoal civil e a duas máquinas niveladores que, munidas de grandes pás, aplanavam uma picada das suas irregularidades provocadas pelo uso e pelas grandes chuvadas muito habituais na zona quando, num determinado dia o alferes que nos comandava resolve chamar-me:

- Azevedo, tenho estado a observar e lá ao fundo da reta por vezes vejo alguns vultos a atravessar a picada nos dois sentidos: Congo – Angola e Angola – Congo. O Capitão pediu-me que uma vez que andamos cá por fora e na sua zona de acção lhe arranje um gajo ou outro, vivo ou morto e lhe leve porque fará um relatório como tendo sido trabalho dos seus homens e, sem sair do arame farpado, saca mais uns cobres para a sua Companhia.

Eu, francamente, fiquei meio aparvalhado com aquela conversa e contrapus:

- Mas, meu alferes, penso que não são turras a atravessar a picada. Os turras não serão tão estúpidos que, ouvindo as máquinas e em pleno dia, à nossa vista, resolvam passar ali. Penso que será gente que com suas famílias moram nos dois lados (Angola e Congo) e para eles não haverá fronteira. É o seu território e, de um ou outro lado tanto se lhes faz. Para eles, dois países é coisa que desconhecem e aí vivem com seus familiares e, naturalmente visitam-se, fazem a vida dos dois lados.

- Pode ser, mas não sei... - contrapôs-me firme e acrescentou: - O Capitão é um gajo porreiro, a nós nada nos custa e levamos-lhe um ou dois gajos e ele fará um relatório à sua maneira. Vamos embora fazer uma emboscada a quem vier.

Fiquei admirado com a ligeireza da aventura perigosa e desnecessária mas não tinha alternativa… Havia que obedecer.

Avançamos mesmo. Uma secção, comandada pelo outro furriel ficou de serviço à protecção das máquinas e do pessoal em trabalho e, com a minha e a dele, partimos para aquela coisa sem jeito e estúpida.

Emboscados dentro do capim bem alto no local, em linha com o trilho de passagem das pessoas, eu e o alferes ficamos nos extremos da formação, sendo que a dele ficou mais junto à picada, por onde alguém entraria vindo do Congo. Deu-me ordens para que o “premiado” com a vinda de um ou mais turras do seu lado desencadeasse o ataque, a que de imediato todos os restantes atacariam em força. Eu tive o cuidado de dar ordem aos meus soldados que só abririam fogo depois de eu o fazer e nunca antes e fiquei a rezar a todos os santinhos que o premiado com a chegada de vítimas fosse mesmo do lado do alferes…

Não esperamos mais de ¼ de hora e, por sinais, fico a saber que alguém se aproximava no outro lado. Levantei um pouco a cabeça e vi 3 pessoas (uma mulher na frente seguida de uma criança dos seus 9/10 anos e um homem com uma bicicleta pela mão) que, vindas do Congo e depois de atravessarem a picada, passiva e calmamente se aprestavam para entrar no trilho e… passados breves instantes a metralha forte, intensa e mortífera, fez-se ouvir: Tau! Tau! Tau!

Gritei para os meus rapazes que ninguém fazia fogo e eles obedeceram e, terminado o tiroteio, de imediato parti (partimos) para ver o “estrago”…

E que vi eu? Vi a mulher aos gritos a fugir em grande velocidade trilho fora no sentido que levava e, a meia dúzia de metros acocorada e chorando em gritos aflitivos de pânico, a pobre criança, implorava pela mãe. Aproximando-me peguei-a. Levantei-a, acariciei-lhe a cabeça e a face e pedi-lhe que não tivesse receio que não lhe faria mal. Dei mais 2 ou 3 passos e adiante encontrei a bicicleta caída, com uma cesta no suporte feita de cascas de árvores com duas galinhas a cacarejarem assustadas e, logo após, deitado por terra, gemendo muito, um homem de carapinha muito branca com a coxa da perna direita em mísero estado. Tão mísero e horrível estado que aqui me abstenho de o descrever... Assustador, dramático, muito grave, por demais horrível e dramático.

Quando cheguei perto já o alferes ali se encontrava de cara muito carrancuda. Olhou para mim, levou a mão ao quico que levantou coçando a cabeça, confessando-me:

- Azevedo, acho que já estou arrependido de me ter metido nisto…

O Azevedo não abriu a boca. O Azevedo não respondeu. Tem situações em que a boca fechada diz mais do que se se abrir…

A mulher que fugira regressou ainda muito assustada e receosa mas, não obstante, aproximou-se ficando horrorizada com o espectáculo. Virou de imediato o olhar e, pegando na criança, levou-a pela mão. E não mais as vi…

Então o alferes perguntou-me sobre o que achava de levarmos o homem ao destacamento militar mais próximo para ser tratado.

O aquartelamento ficava a cerca de 20 kms e as suas tropas não pertenciam ao nosso Batalhão e antes a um outro instalado numa vila perto (mais 20 ou 30 kms) na mesma picada.

Concordo, mas ponho em dúvida que o velho indígena, face ao muito sangue que perdia, não obstante o precário garrote que um soldado logo lhe fez com uma peça de roupa, se aguentasse vivo… O pobre tinha o destino traçado...

Meia hora depois, chegados ao destacamento, o alferes que o comandava aproximou-se de imediato e ouviu a explicação/justificação do meu alferes e acedeu a levar o pobre coitado à vila para tratamento, se bem que duvidasse que se aguentasse e rematou dirigindo ao meu alferes, comigo presente:

- Ó pá, mas gente desta, se eu quisesse enchia todos os dias várias camionetas. São pessoas que vivem e têm família dos dois lados e para eles não há fronteira…

O alferes olhou para mim. Eu olhei para ele e nada lhe disse.

E foi assim…

Gratuitamente! Estupidamente!...  

EM TEMPO – Na foto junta, tirada no local e no tempo, mais dia menos dia, onde ocorreu o episódio narrado na crónica, enquanto a água do cantil me mata a sede a indumentária dos soldados diz bem do calor que se fazia sentir. na época. Março, Abril e Maio são sufocantes, naquelas áridas paragens do leste angolano.

Sem comentários: