quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

GUERRA COLONIAL - O FRIO DO MUACO


Há dias, quando escrevi sobre a estadia no Muaco durante a guerra, no local assinalado no mapa de Angola que junto, falei que estavamos ali para proteger os trabalhadores e a maquinaria da Junta Autonomia das Estradas de Angola (JAEA) que procedia à feitura dos aterros para o acesso à ponte, numa protecção tão difícil e perigosa quanto se pode imaginar numa guerra de guerrilha em que nunca se sabe quando o ataque inimigo ocorre e daí a atenção e prevenção sempre continua e atenta absolutamente necessárias.

Aconteceu então que uma máquina que procedia à escavação de terras para os aterros, ali a 6, 7 ou 8 kms da ponte e do nosso acampamento, avariou. E avariou de tal forma que estava impedida de deslocar-se, como o fazia a cada final do dia de trabalho, para a protecção noturna das nossas forças no acampamento e, por isso, forçosamente, teria de permanecer no local das escavações e, inevitável, num bom cumprir da nossa missão tínhamos de deslocar para ali tropa para a proteger dia e noite até que nova máquina, necessariamente mais potente, chegasse. 

Deslocar todo o pelotão era inviável e por isso optou-se por destacar para o local apenas uma secção de homens, coisa de 7 ou 8 militares que, no pequeno descampado e sem a mínima protecção em caso de ataque inimigo que não fosse a própria máquina e um pequeno declive, de pouco mais de um metro do leito de um pequeno riacho que passava no local. O leste de Angola, salvo poucas extensões é uma imensa planície de mata e clareiras de terrenos incultos cobertos por intenso capim e, ali,não era diferente… Uma pequena clareira no capim de solo vermelho, rijo como ferro, aberta já pela máquina enquanto funcionou e, logo a 100, 200 metros, a mata mais fechada ou mais aberta mas “reino” e paraíso das gentes guerrilheiras.. 

Ora, então, tinha de avançar tropa para guardar a velha máquina – que tinha de ser preservada não obstante o risco de perdas de vidas humanas que poderiam ocorrer caso acontecesse um ataque guerrilheiro com tão fraca reacção defensiva mas, pelos vistos, isso pouco contaria… O que contava era a máquina e, como era inevitável, lá vai o Furriel Azevedo com a sua secção. 

Devo aqui confessar que já estava habituado a “alinhar” sempre em 1º lugar nas escalas por via da minha fraca nota final na especialidade, aquando da formação militar inicial…  Tive então negativa nas provas físicas (nunca fiz o “galho” nem “cambalhota) e chumbei no tiro… Como resultado, fiquei com negativa e fui para… “Atirador”. Com negativa e chumbo mas… “Atirador”!...Brilhante decisão! O pior realmente foi a negativa pois, por via disso, alinhava sempre em 1º nas escalas e isso acompanhou-me desde o 1º ao último dia de guerra porque, foi até mesmo após o desembarque em Lisboa… Saídos do Paquete Império, no Cais de Alcântara, todos foram para suas casas ao ansiado encontro dos seus e eu fiquei mais uns dias a despachar malas e bagagens de todo o pessoal do Batalhão. 

Bom, mas voltemos ao Muaco e à guarda da máquina avariada... 

Como já disse, as nossas forças eram de 7 ou 8 homens armados simplesmente de espingardas G3 e equipadas de duas pequenas tendas de lona para protecção do inevitável cacimbo nocturno e da eventual chuva e as indispensáveis “rações de combate” com bolachas e conservas para alimentação mínima. De prevenção levamos também um “foguete” (género “very ligth”) que devíamos lançar para alertar os nossos camaradas no acampamento, sinal que precisavamos de ajuda em caso de ataque guerrilheiro (“turra”, como então eram chamados os que lutavam pela independência).

Durante o dia a coisa decorreu sem dificuldades de maior... Jogamos às cartas, contamos anedotas, etc e assim o tempo foi passando… O pior foi à noite com o cacimbo que começou a cair e o danado do frio inerente que se iniciou e que nos gelava carne e ossos até ao tutano.  Com dois soldados por turno de sentinela, cada um no seu extremo da máquina, eu e os que não estavam de vigia dormíamos deitados, tapados com fracas mantas e muito encostadinhos uns aos outros para, com o calor dos corpos nos aquecermos mutuamente e para melhor suportarmos aquele frio imenso. Mas a barraquita era pequena e muito baixinha e a lona estava logo ali a escassa distância das nossas cabeças e nem podíamos esticarmo-nos muito para não ficarmos com os pés de fora, ainda que calçados, como forçosamente tínhamos de estar.

Mal e a tremer de frio íamos fazendo por dormir quando, subitamente, o Cabo Cunha salta da “cama” e chama-me, por estas palavras:

- Meu furriel, não aguento mais! Temos de acender uma fogueira para nos aquecermos!

E logo mais uns outros o secundaram:
- Isso mesmo! Temos de acender lume para nos aquecermos, se não morremos de frio!

Eu levantei-me de imediato e questionei-os:

- Vocês são doidos? São malucos? Então, até acender um cigarro neste escuro que nem breu é perigoso para a nossa segurança e vocês querem acender um fogueira para morremos todos ao lume, de uma simples rajada de um turra? Ganhem juízo! Doidos!

Mas o Cunha não se convenceu e retrocedeu:

- Meu furriel, não há turras aqui e a gente não aguenta tanto frio. Temos de nos aquecer!

- Nem pensar, Cunha! Nem pensar! Sejam conscientes, pensem um bocadinho, ponham a “caixinha dos pirolitos” a trabalhar e tenham calma. Encostamo-nos mais uns aos outros, vamos aguentando assim e às 6 logo chega o Sol e o dia começa a aquecer. Não autorizo que acendam lume! Está dito!

Os outros pensaram melhor, deixaram de o acompanhar na ideia louca e o amigo Cunha também reconsiderou e, pouco a pouco foi aligeirando a sua louca vontade e não teve alternativa se não cumprir a minha  decisão. Não se acendeu fogueira, rapamos um frio incrível – nunca na minha vida senti coisa igual!… - mas a situação passou, se bem que na 2ª noite o amigo Cunha ainda tivesse um novo arremedo mas mais suave e depressa os rapazes entenderam que estavam a ser irresponsáveis e seguiram as minhas ordens e na 3ª nem já falaram em tal disparate. 

Acho que só lá passamos 3 noites... E já não foi pouco....

Mas tenho dali mais duas recordações: uma de quando usavamos para lavar a cara de manhã a água que corria no pequeno riacho nosso vizinho. Como a temperatura ambiente era gelada às 5, 6 da manhã, a água que corria era morninha e mais parecia que tinha sido… aquecida. Muito agradável! Bem agradável!

A outra recordação era o leite com chocolate que vinha em pequenas latas na “ração de combate”. Como a tenda era pequena para nós, armas e mochilas, deixavamos estas fora e de manhã a lata de leite chocolatado mais parecia que tinha vindo do frigorífico e era muito agradável de beber. Nunca mais esqueci o sabor delicioso daquela coisa!… Com fome e sede, beber um leitinho com chocolate fresquíssimo ao pequeno almoço, foi coisa que me  ficou na memória.

E pronto, hoje fico-me por aqui nestas recordações do Muaco, do frio imenso que ali passamos e da maluquice dos soldados que queriam na noite escura acender fogueira numa guerra de guerrilha. Coisas….

Mas do Muaco tenho mais e, numa próxima crónica vou recordar um episódio ocorrido entre mim e o meu inseparável amigo Joel Costa que meteu…. costeletas de porco… 

Tão hilariante quanto triste mas que ficou para sempre gravado nas nossas memórias.

Na próxima, conto.

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