domingo, 20 de janeiro de 2019

GUERRA COLONIAL - A FOME NO MUACO


Depois de em anteriores crónicas já ter recordado o medo e o frio sentidos na nossa estadia no Muaco, venho hoje falar da muita fome ali sofrida, onde avulta uma hilariante situação que então logo assim entendemos porque, sendo rapazes novos, levavamos tudo com algum humor até porque outra alternativa não tínhamos e foi dessa forma vivida e sentida que assim ficou para sempre nas memórias tanto minha quanto do meu camarada Joel Costa.

Tanto quanto me recordo, o Muaco não distava muito do Cazombo... Talvez cerca de 20 kms mas, como não podíamos ir abastecer-nos de produtos autonomamente dado que o teríamos de fazer em escolta militar e como não podíamos deixar o acampamento sem protecção e as forças eram escassas para as duas missões, resultava que tínhamos de aguardar que do Cazombo, sede do Batalhão, nos viessem abastecer. E como por ali os bens de consumo também não abundavam e como não era a nossa Companhia… Acho que por vezes ficávamos esquecidos…

Lembro-me de vivermos com muita escassez de víveres; um dia ou dois até sem sal e aconteceu mesmo que em determinada ocasião só nos restava arroz e chouriço para pôr no tacho e confeccionar e, como o cozinheiro Nunes era muito inexperiente – tínhamos poucos meses de comissão e a ele ainda lhe faltava o jeito… - saiu cozinhada (?) uma massa qualquer mais ou menos esquisita, espessa e intragável e recordo-me do Cunha, um sempre bem humorado cabo ter-me dito:

- Meu furriel, se mandassemos umas colheradas às tábuas, dava para rebocar as paredes da barraca!

Eh! Eh! Bom sentido de humor do Cunha!

Tanto eu quanto o Joel comíamos com os soldados mas, o astuto Soares, alferes comandante do Pelotão, um açoriano nem sempre bem disposto e sempre também algo complexado, depois das primeiras refeições e vendo como a comida era escassa e má, tratou de se “encostar” ao sr.Correia, o Encarregado Geral da JAEA (Junta Autónoma das Estradas de Angola), único branco da equipa de trabalhadores e responsável principal pelos trabalhos de aterros que ali se faziam.

O sr.Correia e alferes comiam nas instalações dos civis e nós nas da tropa. No final, sobretudo dos jantares, eu e o Joel íamos ter com eles para jogarmos às cartas, ao poker ou às damas e assim passarmos uma parte do serão.

Tudo decorria nesta normalidade, se é que se pode chamar de normalidade a fome porque íamos passando quando, numa boa noite ali chegamos e eles estavam a acabar o seu jantar, então, como sempre, mil vezes superior em qualidade e quantidade ao nosso porque o sr. Correia, beneficiando doutro abastecimento e doutro serviço, tinha a dispensa sempre bem recheada.

O prato era Costeletas de Porco fritas e ainda restavam 3 exemplares numa travessa de alumínio depositada na ponta da mesa e aí o sr. Correia tem a brilhante ideia de nos perguntar apontando para a bonita travessinha:

- Os srs. furrieis são servidos?

Se éramos servidos? Eh! Eh! Seria o mesmo que perguntar a um cego se queria vista…

Os dois, de olhos esbugalhados de espanto, respondemos em coro bem afinado:

- Sim, sr. Correia!!!

Ele ordenou ao criado para trazer dois pratos e talheres e nós sentamo-nos apressados, não fossem as lindas costeletas ganhar pernas e fugirem…

Tirámos da travessa cada um a sua costeleta, atacamos sofregamente cada qual a sua deliciosa fragmentação do bácoro e íamos os dois olhando pelo canto do olho para a restante maravilha que aguardava, solitária, a sua vez de ser deglutida…

Sendo nós dois esfomeados e só restando uma suculenta costeleta, como fazer?

É então que, ainda degustando avidamente os últimos pedacinhos da sua peça, o Joel me pergunta, num misto de interrogação e confirmação, exactamente por estas mesmíssimas palavras que jamais esqueci:

- Azevedo, tu comias aquela costeleta!?…

Perante tamanha e subtil delicadeza, não pude deixar de sorrir e retorqui:

- E tu também, né, pá?…

Aí, ele propôs-me:

- Dividimos ao meio e sorteamos para ver a quem calha a parte do osso, ok?

Ele propôs e eu acordei, se bem que já soubesse a quem ia calhar o osso… Azarento como sou a tudo quanto é sorteios…

Fizemos então o sorteio e o inevitável aconteceu: o Azevedo rapou o osso. Se bem que tivesse um pouquinho de carne agarrada… Eh! Eh!

Mas a insólita situação ficou-nos para sempre na memória e de tal forma ficou que bastas vezes falamos nela, tendo acontecido mesmo que, já depois de regressados ao “puto” e sendo eu já casado, morando num pequeno apartamento na Reboleira e ele em Lisboa, convidei o velho e bom amigo Joel – durante mais de dois anos de convívio diário e em situações particularmente difíceis sempre convivemos magnificamente e em continua sintonia! - para almoçarmos e fiz questão de recomendar à Tense que confeccionasse nem mais, nem menos, que… Costeletas de Porco…

Só que, nessa vez, não foram só três…

E nem estavamos famintos…

(Na falta de melhor e porque é a única que tenho com o Joel no Muaco, repito a foto já antes publicada mas que ilustra um pouquinho sobre o local onde vivemos estas faladas odisseias nos primeiros meses de 1968.)

Sem comentários: