terça-feira, 7 de maio de 2019

VELHOS NACOS DO MEU CHOUTO ANTIGO (1)



ONDE SE REPRODUZEM RETALHOS DE VELHA CORRESPONDÊNCIA 


Creio que aqui, nestas pobres e despretensiosas crónicas tenho referido que, durante os meus mais de dois anos de guerra forçada em Angola troquei correspondência com dezenas de familiares e amigos que faziam o favor de me acompanhar naqueles difíceis dias em que por África andei. Era tão volumosa e assídua essa correspondência que criei mesmo uma lista dos correspondentes com símbolos de código que ia registando à frente dos respectivos nomes e assim sabia, num simples olhar pela lista, quem me devia resposta e a quem eu devia carta ou aerograma… Era coisa prática e de fácil leitura.

Tenho toda essa correspondência recebida em arquivo, na qual sobressai naturalmente a do meu saudoso pai que me escrevia mais de uma vez por semana e por isso totaliza umas dezenas os seus aerogramas e cartas onde me descreve, num bom e bem redigido português – redigia muito bem o meu pai, tendo em conta a sua escolaridade! - , contando-me não só as muitas situações, alegrias e tristezas, dos nossos familiares e amigos como, também, as muitas e diversas ocorrências vividas na nossa aldeia naquele período.
 
De vez em quando delicio-me com o desfolhar daqueles amigos aerogramas, escritos com tanta dedicação, carinho e amor e que fazem recuar-me àqueles velhos tempos em que a minha aldeia, social e economicamente, era tão diferente, tão diferente da que é hoje… Tempos muito pobres e difíceis os de então…

Mas, confesso, não deixo de achar delicioso ali “ter e viver” aquela época, numa singela leitura de uma simples e velha folha de papel, trazendo-me a sensação de que recuo no tempo, vivendo e sentindo aquela realidade...  Uma maravilha! Para o meu gosto… E é com esse espírito e esse sentimento e vivência, de um transporte ao passado, sentido e sofrido, que tem de se saber ler estas deliciosas descrições de então. 

Falava-me sobre tudo o meu pai: os que namoravam à janela ou em casa; os que “saltavam a cerca” pela calada da noite; os casamentos; as cerimónias na igreja e as bodas, não esquecendo a discrição das ementas; os fatos dos noivos e até de que eram compostos os colchões (de palha de centeio) e mesmo as almofadas das camas (com carôlo de milho); de festas e obras na igreja (“ficou bonito mas eu gostava mais de como estava antes...”); das trovoadas; das cheias; dos tremores de terra; das doenças e das mortes e até da difícil trabalho de, a pedido do pároco, que não sabia como cumprir a missão solicitada pelas autoridades, o acompanhar para transmitir a uns pais a morte de um seu filho na guerra (logo ele, que também tinha o seu filho na guerra...); etc, etc, etc. Tanta, tanta coisa bonita na narração manuscrita desde belíssimo homem e excelente pai que, infelizmente, partiu tão cedo!

De tudo isto e muito mais, em que se destacam as muitas vezes em que foi enfermeiro da aldeia, dando injecções a doentes retidos nas camas a kms de distância onde se deslocava de bicicleta, com esforço e a suas expensas e até sobre muitos tratamentos de socorro às vitimas de cajadadas e pedradas, resultantes das diversas desavenças que por vezes aconteciam na terra com forasteiros e não só. E, tudo isto, grátis, voluntariamente e num espírito de missão e altruísmo absolutamente impressionantes.

Pensei fazer uma colecção dessas “istórias” da minha aldeia - e não só… - e a seu tempo aqui as irei recordando e divulgando. Esta, datada de Outubro de 1968, que hoje anexo (desta vez teria sido apenas "um olho à Belenenses" e a Adília que fugiu "espavorida"), será a 1ª e outras a seguirão…

Ainda que possam não ser apreciadas pelos eventuais meus leitores, estas velharias dão-me um gozo pessoal e, reuni-las em selecção, ainda mais.

E pode até acontecer que no futuro algum vindouro as goste de ler…

NOTA FINAL – Neste e em futuros extractos alguns nomes são ocultados por razões óbvias.

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