segunda-feira, 5 de março de 2018

NAS CURVAS DA VIDA, UM SURREAL RESSENTIMENTO


Como umas dezenas de outros acompanhantes aguardo no adro da igreja da pequena aldeia o término das cerimónias religiosas no interior do templo, antes de seguirmos em cortejo fúnebre rumo ao cemitério local levando à sua última morada um falecido e dedicado velho amigo quando, subitamente, sou abordado por um outro acompanhante do triste evento que, cumprimentando-me me diz:
- Boa tarde! O senhor não me conhece, eu já lhe vou dizer quem sou mas, antes, deixe-me que o felicite pelos seus escritos no Facebook que, porque sou ali amigo do Jorge “Pinhal”, tenho vindo a acompanhar e de que gosto bastante! Gosto da forma como escreve! E também me lembro bem que apreciava o que em tempos escrevia no “Jornal da Chamusca”! O meu nome é Joaquim “Pinhal” e sou filho do também Joaquim “Pinhal”, do táxi, da “Carregueira”.

Surpreendido e lisonjeado pelas amáveis palavras agradeci, dizendo ao amigo que não me é difícil escrever como o faço porque sou autêntico e franco. Exprimo o que sinto e me vai na alma e, por isso, o redigir as modestas crónicas, como o faço, não é tarefa difícil ou complicada. Assim faço e assim penso  continuar a fazer.

Aconteceu então que, terminado este inesperado episódio e a chamamento do meu interlocutor, vejo aproximar um homem, com uns quilinhos bem pesados, “redondinho” como eu antes de largar os mais de 20 quilitos que larguei nos últimos meses, a quem o amigo Joaquim “Pinhal” pergunta, apontando para mim:
- Conheces?
O recém-chegado olha para mim de cima a baixo e responde:
- Não!
Eu repito o seu gesto olhando para ele e dou também o meu parecer:
- Eu também não o conheço!
Não? – Interroga-se o nosso interlocutor. 
- Imaginei que se conheciam. Devem de ser mais ou menos da mesma idade… Que idade tens? – pergunta-lhe.
- Tenho 74 anos – informa.
- E eu tenho 73 – acrescento.
- Então não o conheces?  É o Victor Azevedo, do Chouto. – esclarece o curioso Joaquim.
Aí, o nosso novo interlocutor, que já antes mantinha o rosto sisudo e fechado, ainda mais o fechou e, logo de imediato, interrogando-me sem pestanejar e perder tempo, pergunta:
- Ah, pois… O Victor, do Chouto… Você, em tempos, não teve uma transacção ali no Casal “da Palha”? 
Aí eu achei que o sujeito estava a lavrar em grave confusão e discordei:
- No Casal “da Palha”? Não! Nunca tive qualquer negócio no Casal “da Palha”!
E logo ele rectificou, mantendo continuamente o semblante carregado :
- Bom, eu disse transacção mas devia ter dito namoro?... 
Bem, eu aí estava de pé porque, se estivesse sentado, caía do assento…
- Sim, na verdade, quando rapaz, em tempos que lá vão, tive um namorico com a filha do “João da Palha”. Coisa dos meus 18 anitos. – confessei  ao surpreendente companheiro.

E ele, de imediato, sempre com a situação bem presente na memória mas também, manifestamente, sem expressar grande prazer na conversa, acrescentou esclarecendo para grande surpresa minha e logicamente do outro nosso companheiro de conversa :
- Pois… eu também lá andava… Andava também a tentar conquistá-la e em dada altura achei que ia conseguir… Nessa data e depois da minha insistência, ela disse-me: “Vamos à Feira do Chouto e lá tratamos do assunto”. Aí eu fiquei convencido que ela me ia aceitar namoro na feira e, no dia, depois de me vestir, abalei para o Chouto. Mas não sei se ia muito depressa ou o que é que foi e resvalou-me a bicicleta… Caí numa poça de água e sujei-me todo! Tive de voltar para trás e ir a casa mudar de roupa e com isso perdi muito tempo. Quando cheguei ao Chouto procurei logo ver se a encontrava e, quando a vi ao longe, ela andava consigo e, pela forma como andavam, vi logo que se namoravam. Fiquei danado!

Perante este relato da sua frustrada aventura e vendo o seu rosto sisudo e fechado, imagem que ainda hoje guardo na cabeça alguns dias volvidos, não consegui deixar de sorrir e o outro nosso companheiro de reunião bem me imitou. Era irresistível. Uma cena de um frustrado namoro, que até meteu uma queda de bicicleta dentro de poça de água, quem resiste a um largo sorriso, ainda que integrado num… funeral? Ninguém.

Mesmo assim e ainda mais curioso perguntei-lhe:
- E como se chama?
- João. João “Pinhal” – respondeu-me secamente.

É então que, vendo os nossos rostos risonhos – meu e do Joaquim, o do João não… – e logicamente curioso, se aproximou o outro seu parente Jorge “Pinhal” meu conhecido e amigo e eu observei-lhe:
- Já viste o que agora aqui acabo de saber? Há muitos anos atrás, aqui ao teu parente, “passei-lhe a perna”…

E aí, de imediato, secamente, sempre de rosto fechado, fui rectificado pelo meu outrora rival:
- “Passou-me a perna”, não! Quem me “passou a perna” foi ela. Mas, também, quando mais tarde a apanhei, disse-lhe tudo o que me veio à cabeça!...

E, se antes sorriamos dois, passamos a sorrir três… Eu, o Joaquim e o Jorge. Hilariante situação! Impossível conter o sorriso. O meu rival de juventude é que não achou graça alguma…

Nisto, as cerimónias terminaram na igreja e, integrado no cortejo fúnebre, fui andando e rebobinando o filme – filme de 6 m/m, porque na época ainda não havia cassetes vídeo… eh! eh!- filme dos meus namoricos de juventude, das minhas namoradinhas e dos meus rivais de ocasião e algo me fui lembrando… Recordei-me por exemplo que, quando não podia comparecer num ou outro bailarico, pedia a camaradas amigos dessas andanças que observassem os comportamentos das meninas na minha ausência e depois me contassem… Assim como que espiões… eh! eh! E lembrei-me que entre muitas outras velhas cartas a narrar essas andanças, tinha algumas do amigo António Sebastião, meu velho e saudoso companheiro dessas viagens de bicicleta noite e dia e que tão cedo partiu da nossa convivência. Pensei nisso e, chegado a casa, procurei nos meus velhos arquivos…

Procurei e encontrei uma de Março de 1962 desse amigo, de que aqui deixo um pequeno extracto, na qual me narra uma ida a um desses bailaricos mas onde, todavia, o rival João “Pinhal” não estava. Confirma-se assim a referência à concorrência desse ainda agora agastado rival.

O funeral terminou já o dia atingia o seu fim e regressei a casa já com faróis ligados porque a noite caia rápida.
  
E ainda bem que fiz a viagem de noite porque, assim, quem se cruzava comigo e porque não me via, não me chamava de louco por ir a conduzir rindo sozinho. Sim, porque eu fiz toda a viagem lembrando-me da cara fechada, sisuda e aborrecida do velho rival que, agastado e pelos vistos ainda ressentido, deve ter mal dito de, naquele funeral, ter tropeçado com o atrevido “Victor do Chouto”… eh! eh!

E… como é possível um ressentimento amoroso de juventude manter-se mais de 50 anos? Toda uma vida!?... Como?...

Um parágrafo final para esclarecer que, nesta crónica, optei por utilizar nomes fictícios de pessoas e locais em detrimento dos reais, assim pretendendo evitar mal-entendidos, exactamente porque no episódio se fala de uma 3ª pessoa que não estava presente na nossa conversa, pessoa que me merece consideração, respeito, e estima.

Nas curvas da vida…

2 comentários:

Ana Maria Matos disse...

Que aventura!!🤣🤣
É sempre um gosto enorme ler o que o Sr Victor escreve e descreve. Parece que estamos lá. Continue! 😊

Victor Azevedo disse...

Olá, Ana Maria!
Muito grato pela sua visita ao meu blogue e também pelo seu gentil comentário confirmo que na verdade foi um episódio que teve tanto de interessante quanto até de cómico, contribuindo sobretudo para isso o constatar que, não obstante a passagem de tantos anos sobre a ocorrência, ainda se notar - e bem!... - que o jovem concorrente de então ainda hoje se encontra agastado com o seu desaire.
Enfim, coisas de uma juventude que há muito passou mas que, por incrível que pareça, ainda hoje nos faz sorrir.
Um abraço e o renovar do meu agradecimento pela sua visita!