quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

O "BONANZA" E O "CAFÉ DO ILÍDIO"

Dizem os livros e, por experiência própria confirmo que, há medida que o ser humano vai mudando as folhas no calendário da sua vida e os anos começam a carregar os ombros já envelhecidos, no dia-a-dia e quando nas curvas da vida lhe surgem imagens, músicas, fotos, objectos, etc. as suas memórias como que começam a descarregar vivências há muito passadas com elas relacionados e com pormenores rememorados aos mais pequenos detalhes que chega impressionar como estavam ocultos e esquecidos e, como que por milagre voltam à tona, vivas e frescas, como se vividas no dia anterior.

Diziam-me isso em tempos idos os antepassados e, hoje, chegada a minha hora, isso comprovo amiudadas vezes (ainda outro dia aqui escrevi como uma velha e abandonada piteira, que vi em jardim, me fez recuar aos dias de meninice na aldeia quando, juntamente com outros companheiros de aventuras, usávamos sentados nas partes mais grossas das suas folhas e improvisávamos um escorrega no pequeno declive de um barreiro da localidade) e, agora, navegando pela moderna net, “tropeçando” no genérico da música e imagem (que aí deixo) do famoso “Bonanza”, “western” norte-americano cujos episódios atenta e fielmente acompanhava quando rapaz e sempre com tão numerosa companhia em todos os serões de sábado, no início da década de 60 do século passado, no “Café do Ilídio” da nossa pequena aldeia, esquecida e abandonada pelos poderes e onde nada acontecia.

A aldeia não tinha energia electrica (ainda haveria de aguardar por esse melhoramento uns sofridos anos…) mas, nesse saudoso café, tínhamos luz e… televisão!

Herdando nos finais dos anos 50 do século passado uma propriedade rústica na freguesia, Ilídio Pratas, de seu nome próprio e apelido, homem sério, correcto, de bem com todos e que há muito é saudade, decidiu vendê-la investindo o produto dessa alienação num moderno e vistoso café que, entendia, fazia falta na aldeia naquela época com bastante actividade económica e social, reflexos da freguesia então muito povoada e com uma azafama de produção agrícola e serviços nunca antes vividos e jamais repetidos.

Um modesto café, que se distinguia da meia dúzia de tabernas bem afreguesadas porque, além de ali se beber menos vinho, estava equipado com 3 ou 4 mesas com simples bancos de pinho em seu redor e também porque no Inverno o freguês podia aquecer a garganta e o estômago com um cafezinho de cafeteira sempre em cima de velhinho fogareiro de torcida redonda, alimentado a petróleo, era o que a população da aldeia tinha para cavaquear nos fins de dia e aos domingos, na época único dia de descanso semanal.

Ilídio resolve então apostar num moderno café e, tomando de renda um espaço de antigo comércio integrado no edifício da padaria local, transforma radicalmente o seu visual.

Entre as duas portas de rua cria uma montra envidraçada, pinta de cores modernas fachada e interior do espaço e equipa o novel estabelecimento de boas e vistosas prateleiras, balcão envidraçado, mesas e cadeiras de estética moderna e bonita. Para que nada faltasse, adquire uma máquina de café da melhor marca no mercado e equipa todo o estabelecimento e até com um ponto de luz (globo) para a rua, com uma necessária instalação electrica fornecida a todo o espaço por um gerador que instala no quintal. (A foto junta foi tirada na rua, em 1962, frente à fachada do novo café, curtos anos passados sobre sua abertura.)
 

Apostado em colocar ao serviço da população algo completo e único, no café que titulou de “Central” mas que depressa se tornaria para sempre conhecido como “Café do Ilídio”, termina o seu importante investimento com a compra de um televisor, objecto jamais visto na terra, tanto mais que a televisão em Portugal nascera não há muitos anos e, sendo uma dispendiosa novidade, existia em vilas e cidades somente em lares mais abastados e nas colectividades locais, onde as pessoas acorriam para passar os serões deliciados com as notícias e programas do pequeno aparelho.

Na minha aldeia, pronto e aberto ao público, o moderno café, depressa tornou-se atracção não só dos residentes locais como até de moradores de freguesias e povoados vizinhos que o visitavam e frequentavam com agrado.

E, foi aí, no “Café do Ilídio” que “todo o mundo” masculino (o sector feminino nem em sonhos poderia frequentar cafés sem que, no mínimo, a “atrevida” fosse classificada de “estouvada”, “oferecida”, “sem vergonha”, etc…) e, homens, rapazes e mesmo crianças, aos sábados à noite enchiam até à porta a sala para assistirem, com paixão, aos episódios do “Bonanza”. E não era apenas assistência da aldeia, não… Dos Casais e povoados vizinhos, alguns a kms de distância, deslocavam-se ao Chouto apaixonados fans das aventuras da série americana com o pai Ben e os seus 3 filhos, Adam, Hoss e Little Joe que, ajudando o seu amigo Xerife na cidade, destemidos, impunham a ordem, sempre privilegiando os valores morais, as causa justas e a verdade.

Western de sucesso ímpar em todo o mundo, a força e a moral de que pai e filhos eram portadores, vibrava e forçava à assistência desses muitos episódios e, este hoje septuagenário, que bastas vezes beneficia do velho “ficheiro” craniano quando, no percurso dos dias, “tropeça” em algo que a tempos passados o faz recuar, bem recorda o enorme prazer e entusiasmo, que nem no exercício de uma autêntica religião, o levava irresistivelmente nos serões de sábado a juntar-se aos seus conterrâneos nas noites escuras da sua esquecida e isolada aldeia, frente a um televisor alimentado de corrente electrica vinda, como que por milagre, de um pequeno, portátil e tão prestável gerador.

Tão reais, tão apaixonantes, tão viciantes e gostosos foram esses serões do “Bonanza” que ainda hoje são bem recordados e, de certo, não só por este usado escriba, autor destas linhas, como por muitos dos seus companheiros de então, entusiastas apaixonados de uma boa e viril coboiada que nunca perdiam no sempre lembrado “Café do Ilídio”.

2 comentários:

Rovato disse...

Só tu meu grande amigo Victor me fizestes agora largar uma lágrimazinha de saudade,ao ler esta bela prosa como só tu sabes fazer. Parabéns. Era assim no Chouto e na Carregueira nos cafés ou nas Sociedades Recriativas. Saudades de outros tempos. Força Abraço. Antero Bento

Victor Azevedo disse...

Muito obrigado pela tua visita e pelas amáveis palavras, meu caro e velho amigo Antero Bento!
A idade traz estas recordações do que em tempos idos tanto apreciávamos e eu gosto agora de as passar à escrita para que outros avivem a sua memória e, vamos lá, porque pode acontecer que um dia, quando já não estivermos por cá e se alguém tropeçar nelas, os nossos vindouros fiquem a saber como vivíamos no nosso tempo.
Talvez seja lirismo da minha parte mas, que fazer? Sou assim.
Um abraço, Antero!