sexta-feira, 27 de novembro de 2020

O DESMAIO DO LUCIANO


NOS 46 ANOS DA MORTE DE DR. ARMANDO CUMBRE, O RECORDAR DE UMA SUA SINGULAR CURA... 

Luciano, pedreiro de profissão em Casa Agrícola da sua amada Chamusca, viveu toda a sua existência para o bom desempenho do seu trabalho, que executava com evidente prazer e prontidão; para a sua Celestina, companheira fiel, amiga e terna com quem uniu o seu destino nos inícios dos anos 40 do século passado e para a bonita Isabel, de seu nome de baptismo, menina de voz doce e delicada que haveria de nascer, fruto dessa união.

Formavam na vida o tradicional e ideal lar, comum na época, em que o marido trabalhava e levava para casa o produto do seu labor; a esposa cuidava do ninho, das roupas e das refeições e, a filha, depois de terminada a escola primária, costurava, bordava e fazia croché, no intuito de ser menina prendada para um seu futuro pretendente.

Luciano levava vida regrada e sem extravagâncias – que na época também não seriam permitidas... – com a dedicação ao trabalho e o apego ao lar. Laborava as normais horas de serviço por conta do senhor seu patrão, ia almoçar a casa, já que os dois locais, dentro da vila, pouco  distavam e, findo o período diário, voltava a montar a velhinha bicicleta Rua Direita fora e terminava desviando para a outra via, que percorria já a pé, apoiado no velocípede, dado que a pequena inclinação da rua e os seixos redondos da velhinha calçada algo dificultavam o seu percurso a pedais.

Pelo caminho, porque Luciano era homem muito comunicativo e sociável, correcto e educado com todo o seu semelhante, quedava-se um pouco em conversinhas amenas com o sapateiro, com o merceeiro, com as senhoras da “palha ripada” e, finalmente, tendo a “Taberna do Zé” como testemunha do seu trajecto, aí entrava uma tarde ou outra; conversava com os seus frequentadores e velhos amigos e, pelo meio, lá ia molhando a palavra e satisfazendo o paladar e o estômago com os pequenos tintinhos que lhe adoçavam a boca e algo o aliviavam das chatas canseiras do dia de trabalho.

Uma vez ou outra bebia um copinho a mais - talvez um pouquinho a mais… - e, chegado ao lar, ou porque vendo-lhe os olhinhos mais pequeninos, ou porque o nosso amigo arredondava demais as conversas ou até mesmo, talvez, expelindo algum odor avinhado, logo a sua atenta e preocupada Celestina o interpelava: 

- Luciano, estiveste a beber! Estiveste na “Taberna do Zé”!…

A que o nosso Luciano contrapunha:

- Olha, tinha o “Manel da Emília” à porta, entrei e estivemos os dois um bocadinho a conversar sobre as nossas vidas. Foi só dois copinhos a cada um…

Luciano repetiria a dose e a situação uma ou outra vez ao longo dos seus dias e sempre a cena em casa se reviveria e sempre a afável companheira, amiga e preocupada, o admoestava com dedicação e... docemente, sempre muito docemente.

Até que um belo fim-de-tarde, ou porque entrou mais um amigo no convívio e, no “agora pago eu, depois pagas tu”, ou porque aconteceu um pouco mais de entusiasmo nas conversas na “Taberna do Zé”, o nosso Luciano enganou-se um pouquinho na contagem “deles” e, quando resolveu avançar para casa, de bicicleta pela mão, a “carga” de um copito mais, repetido uma ou mais vezes, já lhe “ofereciam” um leve ziguezaguear não muito recomendável…

Mas... chegou. Chegou, não "sãozinho" na verdade mas… ainda assim, sozinho e pelo seu pé.

Já era um nadinha tarde para o habitual e as pacientes e ansiosas Celestina e Isabel, sentadas, de mesa posta para a janta que esfriava, viram-no abordar a porta da cozinha e, de mão amparada à ombreira, tirar o boné que lhe protegia a alva carequinha e, a preocupada companheira, vendo-lhe os olhinhos pequeninos e redondinhos, logo exclama:


- Luciano, estiveste a beber! Estiveste na “Taberna do Zé”!… - A mesma exclamação de outras ocasiões mas, desta vez, bem mais enérgica… Docemente, mas um bocadinho mais enérgica...

O nosso amigo, sem dizer palavra dá um passo em frente, entra na cozinha e, quando se apresta para se sentar à mesa, tomba para a direita e… estende-se ao comprido no chão vermelho de tijoleira e logo a aflita Celestina se levanta e grita, assustada:

- Ai Jesus! Ai Jesus! Luciano? Ó Luciano?!

A filha Isabel chama-o, preocupada:

-Pai? Ó meu pai? Meu Deus!…

A mãe Celestina chorosa, ordena-lhe aos gritos:

- Isabel, corre ao telefone e liga ao Dr. Cumbre, que nos acuda! Que salve o pai!…

A rapariga em dois pulos chega à sala de jantar e disca no preto aparelho o número do médico.

Atende do outro lado a criada do clínico e Isabel roga-lhe:

- Chame-me, por favor, o sr. dr.!

Cumbre, jantava… Levanta-se, vai ao telefone e ouve a aflita moça:

- Sr. Dr., sou a Isabel, a filha do Luciano. Sr. Dr. o meu pai está muito mal! Caiu desamparado, está de olhos cerrados e boca fechada e não responde aos nossos chamamentos. Não reage. Venha vê-lo, sr. dr.! Eu e minha mãe estamos aflitas. Por favor!

O médico deixa a refeição a meio, mete-se no automóvel e, em poucos minutos, chega à residência das preocupadas mulheres. 

Isabel, de porta aberta, já o aguardava ansiosa:

- Sr. dr., o meu pai não abre os olhos e não nos responde mas já abre e fecha a boca mas não diz nada, nada.

- Vamos já ver. - responde de pronto o médico, avançando casa adentro na direcção da cozinha.

E, Luciano ali continuava. Inerte, pálido e de olhos cerrados... 

Cumbre baixa-se e leva os joelhos à tijoleira do solo, dobra-se sobre o tórax de Luciano e escuta-lhe as batidas do coração; pega-lhe no pulso e conta as pulsações; queda-se pensativo breves segundos e, levanta-se de rápido indignado, no mesmo instante que vocifera e lamenta:

- Ai este cão que está com uma grande bebedeira e faz-me vir aqui!!!…

Rápido, pousa a maleta, estica os braços, abre bem as mãos e… zás-zás!; prega dois sonoros estalos nas inertes bochechas de Luciano que, de imediato, abre os olhos.

O médico pega na maleta, vira costas e deseja boa noite às mulheres, perante o espanto de Isabel que, seguindo-o na direcção da saída, ainda lhe pergunta:

- E o sr. dr. não receita nada ao meu pai?

- Receito: Amanhã diz-lhe que, já que não sabe beber vinho, que beba água!…

Saiu lesto, entrou no carro e foi concluir o seu jantar que esfriava...


(NOTA – Ainda que, por razões óbvias, os nomes dos intervenientes nesta cena com o Dr. Cumbre sejam fictícios, o episódio narrado é absolutamente verídico.)

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