terça-feira, 4 de dezembro de 2018

GUERRA COLONIAL - UMA CHATA CRÓNICA


Esta velha fotografia que aqui anexo, em que surjo acompanhado do meu velho companheiro Joel Costa, amigo praticamente sempre presente no meu dia a dia dos tempos difíceis da Guerra de Angola nos anos 67 a 69 do século passado, provoca-me diversas recordações que aqui gostaria de registar, fazendo desde já a primeira, sendo que outras se seguirão.


A foto foi tirada no Muaco, pequeno lugarejo situado perto do Cazombo, na picada que nos conduzia a Lumbala, lá bem no interior do Leste angolano, no quadrado à direita, assim como que um apêndice, que sai do mapa na fronteira leste.

O nosso pelotão, de cerca de 30 homens, dava protecção aos civis da então Junta Autónoma de Estradas de Angola (JAEA) que procedia à construção dos necessários aterros para acessos à ponte sobre o Rio Muaco (cuja denominação certamente daria o nome ao local onde estavamos) aterros de que careciam a respectiva ponte já antes erguida pela engenharia militar, sendo portanto o nosso trabalho proteger os trabalhadores e a maquinaria de um eventual ataque inimigo.

Alojados - alojados, é favor mas… enfim… -  em toscas barracas de madeira, deixadas pelos militares da engenharia, lúgubre e estranhamente pintadas de preto, possivelmente em aproveitamento de um qualquer resto de tinha adquirida para outros fins, ali dormíamos – ou fazíamos por isso… - em cima de umas toscas armações de troncos de madeira erguidas a 40/50 cms. do solo para evitar a mordedura de alguma cobra, lacrau ou outro qualquer outro bicharoco por ali em visita nocturna. Como o "estrado" não era minimamente liso tratamos de lhe colocar como "estrado de colchão” (?) uma chapa de zinco. Isso mesmo: uma chapa de zinco das que tinham sobrado da cobertura das barracas. Mas, acontecia que, como sabemos, essas chapas são onduladas e então houve que usar a imaginação para encher as partes côncavas da ondulação… Como fazer? Terra, suja e húmida, não. Óbvio. Por isso fomos às folhas das árvores e arbustos que abundavam na mata para além da pequena clareira onde se erguia o acampamento. Lembro-me que eram pequenas e verdes folhas, assim como que de mióporos, que serviram de estrado liso e fresquinho. Por cima colocamos uma manta e assim estava o “colchão” perfeito… Pois é… Não me canso de dizer que, nos dias de hoje, nenhum – nenhum! - militar português, soldado ou graduado, estaria disponível para passar o que passamos na nossa geração por via da guerra forçada!

Mas, avanço nas recordações daqueles difíceis dias:

Para além das barracas para os civis, tínhamos as dos militares sendo que duas eram para soldados e cabos, outra para furrieis e ainda outra para o alferes. A cozinha era mais ou menos ao “ar livre”… Um pequeno telheiro e nada mais.

Eu, como furriel, dormia com mais dois companheiros com igual posto: o já falado Joel e um velho amigo que nunca mais vi e que era meio “cacimbado”, de nome Abreu. Bom rapaz mas um nadinha nada louco… E ele ria-se quando lhe chamávamos “Abreu - O louco”…

Dessa colectiva dormida recordo-me de duas situações algo complicadas na altura e que agora, vistas à distância, considero patuscas (pelo menos uma…) A primeira resultou da situação de stress, ou talvez melhor dizendo, medo, medo com que ali vivíamos naquele fim do mundo, com fraca preparação e ainda mais fraco armamento, acontecendo por mais de uma vez que, ao virarmo-nos durante a dormida, as chapas de zinco faziam um natural e característico barulho e era ver, pelo menos por duas vezes, o amigo Joel, imaginando rajadas de metralhadora, mandar um salto para o chão e abraçar a amiga G3 que, fielmente, dormia a seus e nossos pés encostada à parede da barraca. Quando se lembrava onde estava, esfregava a cara e pedia-nos desculpa pelo cagaço... 

A outra situação…Bem, a outra situação é hoje patusca mas foi na altura deveras confrangedora para este escriba, ingénua e virgem criatura a viver situação absolutamente inédita…

Surgiram-me, nos denominados “países baixos”, uns indesejáveis, comichosos e arreliadores bichos de muitas patinhas e. este pobre rapaz, na altura a dormir com os outros dois companheiros, sentiu-se deveres constrangido…

Faleis-lhe francamente:

- Ó pá, estou tramado!... (bem, não falei bem assim, porque usei o apropriado e obsceno vernáculo…)

- Então? - pergunta um.

- Estou com uma carrada de chatos, pá! - confessei-lhes de imediato e acrescentei:

- Não me sinto bem a dormir com vocês assim e vou ter que ir depressa ao Cazombo para matar esta merda! Vou catando os gajos mas não dou vazão e continuam sempre a nascer, cada vez mais.

Eles foram impecáveis, não esqueço: jamais me apresentaram qualquer obstáculo por com eles continuar a dormir enquanto não tivesse transporte para a sede do batalhão e, ainda assim passei mais umas noites. Duas? Três? Já não me recordo mas recordo-me bem que, nem única vez, tanto o Joel, quanto o Abreu, manifestaram o seu desagrado pela situação. Foram impecáveis! Foram amigos!

E fui ao Cazombo, logo que pude…. E, chegado ali, procurei de imediato o Rosa, furriel enfermeiro amigo que de pronto me pediu:

- Mostra lá essa merda!

Visto o porco panorama, abre a boca e, entre espanto e, em lamento, confessa:

-  Ó pá, como isso está!… E com lêndeas!… E eu sem remédio para atacar os gajos… Vamos aplicar o que tenho: o spray para matar os mosquitos e as lêndeas tens de as catar…

- O quê? Uma a uma, Rosa?- pergunto estupefacto.

- Que remédio, Azevedo… Não há alternativa. O spray não acaba com elas.

E assim foi!… Teve de ser! … Durante um ou dois dias, várias vezes ao dia, atacávamos os danados dos bicharocos com spray das melgas e que, assim, pouco a pouco, foram sendo dizimados e o mais chato foi mesmo os “ovos” dos gajos… Tive de os ir catando. Catei, catei e, regressado ao Muaco, o catar ainda continuou por largo tempo…

E pronto, já chega de porcaria!… 

Fico-me por aqui, tanto mais que acabei por redigir numa chata narração uma porca crónica.

E prometo não voltar ao tema...

EM TEMPO - Muito depois de redigir e publicar esta crónica encontrei no meu Baú de Velharias uma outra foto também tirada no Muaco, que agora incluo no texto e onde podemos ver algumas das barracas pretas do acampamento, sendo que a nossa, a dos furrieis, era a que está à direita.

Sem comentários: