sábado, 13 de março de 2021

ZECA - NA EFEMÉRIDE, A PATUSCA HISTÓRIA...

O calendário recorda-me que passa hoje o 1º aniversário da triste partida do meu primo e amigo de sempre, Zeca e, não posso deixar de aqui a referenciar tanto mais porque, para além de muito me entristecer a sua morte, também muito me penalizou o facto de no dia seguinte não o puder acompanhar à sua última morada por precaução relacionada com o danado do vírus que tinha acabado de chegar ao nosso país. Duplamente assim, muito tristes, foram aquelas horas vividas um ano atrás.

Tinha-o visitado dois meses antes na sua residência e com ele conversado durante mais de 
uma hora, (de que deixo aí foto do momento) numa conversa bem agradável, onde recordamos tempos passados das nossas vivências comuns e, hoje, talvez venha a propósito aqui repor duas dessas rememorações, sendo que, na primeira delas somente de um pequeno detalhe não me recordava e, na outra, que ele apreciava sobremaneira, de tal forma que ao longos dos anos várias vezes a trouxe aos nossos diálogos exibindo então sempre um sorrisinho maroto por, como confessava, ter bem coladas na mente as cenas que viveu na caricata situação. Todavia, naquela hora, foi uma lembrança que tive de suspender na sua abordagem porque a esposa, Marolina, vinda da cozinha, entrara na sala para se nos juntar e essa rememoração pareceu-me pouco aconselhável… Guardei-a para um próximo encontro que, infeliz e lamentavelmente, não mais poderá acontecer... 

Na primeira recordei os recuados tempos idos quando, de bicicleta, aos sábados de tarde, pedalávamos pelo Vale de S. Maria, subíamos à Cumeada e descíamos por estreitos e péssimos carreiros até à Ribeira de Ulme, chegando ao Casal de Paíres a buscar a irmã, professora, que dava aulas durante a semana na escola primária local. 

Pergunta-me, algo surpreso:

- Lembras-te disso, Victor?

Respondo-lhe de pronto:

- Muito bem, Zeca e também me recordo daquela cena bem hilariante quando o Daniel (nome fictício pelas razões óbvias que abaixo surgirão), vindo da capital, te comprou o papel higiénico para o amigo…

Zeca, abrindo a boca de espanto:

- Ainda te lembras, pá? – perguntou, sorrindo.

- Se lembro… Contaste-ma tantas vezes, sempre com um risinho maroto…

E o nosso Zeca, lembrando-se da situação, voltou a abrir a face com evidente gosto.

E ia de facto para a rememorarmos - para rirmos um pouco… - quando a prima Marolina entrou na sala com um prato de biscoitos e eu achei que, dado o conteúdo da historieta, era melhor calar-me…

Trago-a hoje aqui porque bem me recordo que o saudoso Zeca adorava reviver o episódio e, poderá ser que, lá onde estiver e enquanto aqui a deixo, ele de certo sorria de novo…

Naquela noite, a meio de uma semana de trabalho e a exemplo de muitas outras no tempo da minha mocidade, aí pelos anos 60 do século passado em que habitualmente depois do


jantar ia passar um bocadinho do serão ao café do meu Tio Antero – e também do Zeca – dos quais deixo aí uma foto mais ou menos da mesma data à porta do café e, naquela noite não fugi ao hábito. Estava escurinha a noite, de temperatura amena depois de um dia quente daquele Verão. Passei primeiro pelo café do Carraço onde dois ou três clientes jogavam as cartas e outros tantos acompanhavam qualquer programa na televisão alimentada pela corrente do gerador que, horas a fio a produzia no quintal da padaria. Dobrei a esquina, entrei no largo da igreja e, na escuridão da noite, a velhinha calçada recortada e iluminada, não obstante a fraca qualidade da luz nas entradas da taberna do Polidoro e do café do Tio Antero, diziam aos interessados que os estabelecimentos estavam abertos. Foi aí, no café do Tio Antero, que entrei. 

No canto do pequeno balcão de tampo de pedra mármore onde, no Inverno, sempre estava o velhinho fogareiro a petróleo de torcida circular, de chama mínima para manter quentinho o café na cafeteira de esmalte azul, estava agora um necessário candeeiro de pé alto (idêntico ao da imagem junta) que, em conjunto com um outro, sempre pousado em cima do velho e


pesado cofre no canto direito da sala, alumiavam a casa. Em redor de uma mesa de pinho que, com mais outras três compunham o conjunto de mobiliário para uso da clientela, mesas regularmente sempre bem esfregadas e limpas a que se juntavam uns quantos bancos, também de pinho, sempre limpíssimos e asseados, o tio conversava com dois clientes que bebericavam uns copinhos…

Dirigi-me ao grupo para cumprimentos. Beijei meu tio e, enquanto apertava as mãos dos dois amigos de ocasião, vejo o Zeca que, ouvindo a minha voz e vindo do interior da loja (mercearia) contígua, pega-me pelo braço puxando-me para o seu interior, pedindo a meia voz:

- Ó pá, anda cá que quero contar-te uma cena que hoje aqui vivi.

E, na meia penumbra de uma luz de um outro velhinho candeeiro a petróleo pousado junto à balança, enquanto eu me encostava ao balcão e ele aos grandes gavetões dos víveres que, com os armários na parte superior e de fora a fora da parede compunham toda a frente do interior do estabelecimento na área aquém balcão, o Zeca interroga-me de pronto:

- Já ouviste dizer alguma coisa sobre os gostos esquisitos do Daniel, desde que foi trabalhar para os lados da capital? 

- O quê? Que ele é maricas? - questionei, bruscamente, fugindo de utilizar o vernáculo bem português por calcular que o Zeca poderia não gostar de o ouvir. Na verdade, jamais escutei da sua boca um palavrão. Nunca os pronunciou e nem sei mesmo se os sabia?… Que sabia, certamente, mas nunca os pronunciava. Um senhor! Um diplomata no trato!

- Bem... Pois… - acrescentou desajeitadamente mastigando em seco ao ouvir o termo que usei.

Não o repetiu e, como que emendou:

- Pois… diz-se para aí que parece que tem uma certa atracção por homens…

- Já ouvi qualquer coisa, pá. Mas não sei se será verdade?…

E o Zeca atalhou de pronto:

- Ó pá, hoje passou-se aqui uma cena comigo que vou contar-te: Estava ali à porta do café e vi virar a esquina do celeiro, vindo na minha direcção o amigo Daniel que desde que está para os lados de Lisboa nunca mais vira. Vinha acompanhado de um outro rapaz. Dirigiu-se a mim, cumprimentou-me e apresentou-me o companheiro como um amigo da zona onde agora está, dizendo-me que lhe tinha vindo mostrar a sua aldeia.

- Observei-lhes: isto tem pouco para ver.

Ao que outro logo respondeu: 

- Bem, já vi aí algumas coisas interessantes.

- Ó Victor - observa-me o Zeca -, não sei o que é que ele viu interessante aqui mas… pronto.

É então que o Daniel informa:

- Agora vou mostrar-lhe o chafariz. - E parte rua abaixo…

Passados alguns minutos, que deram tempo para a ida e volta e, estando eu aqui no meu estabelecimento, vejo-os chegar à porta com o Daniel a entrar e a dizer ao outro que ficasse ali, na rua.

O nosso amigo Daniel diz-me então:

- Amigo Zeca, ele está com vontade de satisfazer uma necessidade mas estivemos a ver e, aquilo ali (referia-se ao nosso urinol público), é só urinol, não tem sanita…

- Pois não. - respondi-lhe. - É só para urinarmos.

- Ah e então como fazem se ali não têm sanita?

- Olha, Daniel – respondi: Vamos ao cabeço. E apontei-lhe ali o “cabeço da igreja”.

- Ali??? - perguntou-me, muito admirado.

- Bem, não ali mas lá mais à frente, onde começam os sobreiros e o mato. É lá que, atrás de um árvore ou de um tojeiro, arreamos a calça.

- Oh, não sei se ele se ajeita para isso?… Ele está habituado à sanita...

- E, amigo Zeca - voltou a perguntar-me: E para se limparem, como fazem?

- Olha, há quem use uma pedra das muitas que há por lá mas eu costumo levar um pedaço de folha de jornal.

- Jornal??? - pergunta-me o Daniel, muito espantado.

- Isso é muito áspero, Zeca. O amigo vende papel higiénico?

- Vendo.

- E vende-me um rolo, por favor?

E, acrescenta-me o Zeca na narração:

- Victor, fui ao maço, retirei um rolo e vendi-lhe, com um espanto que nem imaginas… E, que fez ele, enquanto eu fazia um esforço enorme para não me rir?… Pagou, agradeceu, virou costas, saiu, entregou o rolo ao amigo dizendo-lhe:

- Toma! Anda comigo. Vou indicar-te.

- E, meu caro primo, imagina a cena que eu vi e não me sai da memória: o amigo pôs o rolo debaixo do braço e lá vão eles, os dois lado a lado, passinhos curtos mas rápidos a caminho do cabeço e... não mais os vi. Não mais os vi, pá. Fiquei sem saber se o amigo conseguiu arrear a calça, ou não…

E o saudoso Zeca, ao longo dos tempos, recordar-me-ia esta hilariante história várias vezes… E sempre, sempre com um sorrisinho maroto… 

Sorrisinho maroto que, agora, lá onde estiver, ao ver novamente esta lembrança, que eu também não esqueci mais, acredito que seguramente renovará…


NOTA FINAL – Importa dizer que ao longo da sua vida o comportamento do aqui chamado de Daniel em nada confirmou as então faladas suspeitas de homossexualidade, donde se deduz que, ou tudo não passou de um pequeno desvio de adolescência ou, então, um “diz-se, diz-se” em que a voz do povo por vezes é fértil e, quantas vezes, injusta. Mas que os factos aqui relatados foram reais, lá isso foram...

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