Não que ele fosse o vulgarmente chamado “bobo da corte”, porque o Máximo (nome fictício) até era bastante sóbrio no dia a dia nos contactos com todos mas a verdade é que, na camarata dos furriéis ele, que sempre adorava entrar nas partidinhas a outros, muito se irritava quando a brincadeira lhe batia à porta, reagindo muitas vezes bastante exaltado e ofendido e, isso, para além de ser motivo de risada geral, mais ou menos frontal, mais ou menos escondida por todos nós, mais nos aumentava o desejo de o irmos picando.
Tinha um ego muito acentuado, o rapaz. “Eu é que sei comandar os homens!”; “Eu é que sei cumprir a minha missão!”; “Eu é que sei como é!”; Eu é que sei mais isto e mais aquilo... Mas, reconheça-se, não obstante este forte autoconvencimento, o furriel Máximo era um excelente rapaz, leal, sincero, bom companheiro.
A exemplo deste modesto escriba, o rapaz também tinha deixado na então chamada Metrópole a sua apaixonada namorada mas, enquanto o Azevedo, pouco mais de meio ano decorrido na guerra, depois de situações estranhas e desentendimentos com a namorada viu a sua relação terminar, o nosso Max e a sua menina viviam intensa paixão, reforçada pelo acordo mútuo de diariamente sempre se escreverem. Tinham prometido e isso cumpriam. Todos os dias o nosso amigo redigia um aerograma à sua amada e, sempre que o correio chegava ao distante e inóspito leste angolano - quase sempre com vários dias de demora… -, era ver o furriel Max de mãos cheias de cartas e aerogramas apressado a correr para a camarata onde cumpria sempre o mesmo ritual: sentava-se na cama e, uma a uma, lia, sorvia e saboreava embevecido as doces palavrinhas da distante amada.
O Azevedo, sem namorada, recebia menos correspondência... Família, amigos, um ou outro jornal ou revista e… pronto.
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Recanto da camarata de furriéis no Leste |
Era então momento do amigo Max voltar a picar, como o ia fazendo desde a primeira hora do desenlace do namoro: “Tu, nada! Deixaste a gaja pôr-te os cornos e agora chuchas no dedo… Anjinho de merda! Nem sabes escolher, nem sabes nada e agora sofres as consequências.”
E o furriel Azevedo, a exemplo da primeira vez, sempre o aconselhava da mesma forma:
- Max, não cuspas para o ar!… - Conselho que muito o irritava porque via nele uma suspeita sobre a lealdade, sobre a confiança e a paixão da sua amada.
- O quê, pá? - atalhava, indignado - Pensas que a minha é como a tua? Pensas que eu não sei quem escolhi? Pensas que eu não sei quem lá deixei?
Tinha conhecido a sua querida quando militar numa cidadezinha de Portugal, localidade que, por casualidade, era também terra de residência do cabo José (nome fictício) e mais 2 ou 3 soldados igualmente da nossa companhia, por sinal rapazes educados e simpáticos e que bastas vezes connosco furriéis se juntavam em conversas, jogatanas de bola e outros divertimentos, tendo-nos divulgado numa dessas conversas a casualidade de conhecerem a moça do Máximo. Como elemento adicional, por eles ficamos a saber que a pequena, se bem que em diminuta escala, tinha um leve defeito no andar e, claro, isso foi a cerejinha no topo do bolo para mais um nosso gozo com o amigo Max...
Quando, um dia, sentado na cama, lia a correspondência recebida, ouviu-se uma atrevida voz vinda do fundo da camarata:
- Então, a “coxinha do Tide” (numa alusão a uma famosa rádio-novela, apoiada pelo “Tide” detergente então muito conhecido, que tempos atrás com muito sucesso tinha passado na rádio portuguesa em que a miúda, sua principal figura, era... coxinha) – Então, a “coxinha do Tide” está melhor da perninha? - ouviu-se.
Caramba! Que foste tu dizer?… Max, levanta-se que nem com uma mola e interroga gritando:
- Quem foi o cabrão? Quem foi o cabrão que disse isso, que eu mato-o? Quem foi que diga, cobardolas!
Mas não matava nada. Não matava uma mosca o nosso Max. Era só um desabafo vindo dos impulsivos nervos que sentia.
Mas, quando calhava, lá largava para o pobre Azevedo:
- Anjinho! Anjinho de merda! Não sabes nada, levaste com a parelha.
E o furriel Azevedo sempre o aconselhava de forma igual:
- Max, não cuspas para o ar!…
Mas o tempo foi passando e, chegada a data do mês de licença anual, como era inevitável o nosso amigo teve de viajar para o “puto” - como na enorme Angola tratávamos o pequenino Portugal europeu – não sem que antes, numa das vezes que escrevia à pequena, o aconselhássemos:
- Max, lembra-a: ela que não esqueça que não pode falhar um dia sem tomar o comprimidinho? Vê lá se vens deixando-lhe um Maximosinho na barriga...
Mais uma exaltação do rapaz; mais uns insultos do nosso Max… O costume. E as nossas costumadas risadas…
Partiu então de férias e, na sua ausência, alguém lembrou que teríamos de lhe preparar mais uma partidinha no regresso… Sugestão dum, ideia doutro e a decisão foi tomada: depois de chegar, mais semana, menos semana, forçosamente “alinharia” em qualquer saída de serviço de dias e, nesse intervalo, armaríamos a gracinha…
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Na Tentativa, a cama desocupada do Max onde foi colocado o "ornamento" |
Terminado o mês de licença Max voltou. Voltou feliz da vida como é lógico e, logo, poucas semanas decorridas, teve de sair em escolta ao Cazombo. Sabíamos que a ausência seria de 2 ou 3 dias e, se nesse intervalo chegasse correio, a brincadeira avançaria. Pensamos nisso e assim aconteceu…
Pelos aerogramas chegados e a aguardar na secretaria o seu levantamento, o Joel Costa – foi o furriel Joel o autor material da “falsificação” -, estudou e ensaiou bem a caligrafia da pequena e vá de redigir um aerograma em nome da menina…
Por fora, no endereço e remetente, estava igualzinho aos por ela escritos, no texto também muito aproximado… Dobrado e fechado pedimos ao camarada da secretaria que o juntasse ao correio do Max que, como era hábito, logo que chegasse correria a levantar.
Terminada a escolta Max chegou e de imediato entrou na camarata. Rapidamente pousou a G3 e a cartucheira aos pés da cama e, apressado, correu para a secretaria. Foi num pé e veio no outro com as mãos cheias de correspondência.
Na camarata dos furriéis, em cima das camas, Joel e Silva jogavam xadrez; Ferreirinha assistia ao jogo enquanto ia chupando o seu cigarrinho; Galinheiro, fingia que dormia; Azevedo, simulava que lia um livro; Madureira e Chantre conversavam mais ao fundo e, mais uns dois ou três descansavam, parecendo desatentos… Parecendo mas... pelo canto do olho, de soslaio, a rapaziada esperava o ribombar dos “trovões” que se adivinhavam, chegada que fosse a vez do Max abrir e fazer a leitura do “simpático” aerogramazinho…
E que “dizia” a amada do nosso amigo? Rezava assim:
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"Ornamento" idêntico ao usado |
Foi o bom e o bonito quando o camarada Max bateu na brincadeira! Deu um salto para o meio da camarata e...
- Quem foi o cabrão? Quem foi? Eu mato-o! Eu mato esse filho de puta!
E pensou melhor…
- Ou não foi só um e foram todos? Foram? Todos uns filhos de putas! Mato-os!
Claro que não matou. Regressamos todos vivos... Eh! Eh!
E as “partidas” continuaram… E as brincadeiras prosseguiram e tiveram o seu grande epílogo no 2º ano de comissão, estávamos então instalados já perto de Luanda em protecção à Fazenda Tentativa, junto ao Caxito, a cerca de um centena de kms da capital.
O nosso Max nas férias desse 2º ano e porque já caminhávamos para o final da comissão, já não foi à Metrólope e optou por viver esse descanso em Luanda, tendo combinado ali conviver, porque também de férias, com os atrás falados cabo José e os soldados amigos da mesma cidade da sua amada.
Por lá passaram uns dias, por lá conviveram e, porque os soldados tinham menos tempo de férias regressaram à Tentativa uns dias mais cedo. E foi com a sua chegada que se soube da grande bronca que os nossos amigos logo se apressaram, correndo, a anunciar ao Furriel Azevedo que eles sabiam ser a permanente vítima das gracinhas do Max…
Chegaram e soltaram a bomba:
- Furriel, temos uma grande novidade para lhe dar: A namorada do furriel Max pôs-lhe o cornos! Deixou-o e sabemos que já anda com outro! O furriel já lhe escreveu várias vezes e nada de resposta. Ele anda desorientado, a bater com a cabeça pelas paredes e não quer falar com ninguém. Triste, amachucado, desanimado!...
- O quê? - de boca aberta, incrédulo, pergunta este escriba – Isso é mesmo verdade? Têm a certeza?
- Absoluta, furriel! Totalmente verdade!
Caramba! Foi a bomba das bombas!
Era a hora da grande vingança do gozado Azevedo…
Procurou de imediato um dos encarregados da enorme fazenda com quem tinha bom relacionamento e pediu-lhe que lhe arranjasse com urgência as ossadas da cabeça de uma vaca que tivesse uns cornos bem grandes e, no mesmo dia, recebeu a sua encomenda.
E a bicha tinha uns cornos enormes!... Grandes e largos. A fazer lembrar a raça de vacas existentes no Minho português…
Azevedo pegou uma corda e atou o macabro conjunto às guardas de cabeceira da cama de ferro do corneado Max (cama vaga no foto anexa) e o conjunto ficou por demais patusco! Muito patusco, mesmo! (Pena, muita pena na hora não ter sido fotografada a “belezura”!...)
E esperou que o amigo Max chegasse…
E chegou. E, dando de caras com a “ornamentada” cama, grita, grita indignado e apontando o vingado Azevedo, atira-lhe em altos berros:
- Foste tu! Foste tu, grande sacana! Foste tu que me rogaste uma praga! Foste tu que me fizeste um bruxedo!
E o Azevedo, admirado, pasmado com a incrível dedução de um tal bruxedo, rebolando-se de gozo:
- Bruxedo, pá? A gaja põe-te os palitos e tu achas que foi bruxedo? Eu não te dizia para não cuspires para o ar? Agora aguenta-te com o peso da “madeira”!...
O bom do Max, calou-se. Calou-se, respirou fundo e… acho que sorriu… Foi para dentro mas… sorriu. Sorriu e… engoliu em seco.
E ainda hoje somos amigos.