Lembro-me do casal Lucinda e António
Espadinha e, logicamente, dos seus filhos Perpétua e Manuel, desde que me
conheço. Enquanto eu e minha família morávamos no Chouto, eles viviam no Casal
do Anafe de Cima, um pequeno aglomerado talvez com uma dezena de habitações e
que distava da aldeia cerca de 2 kms por estrada de terra, aqui e ali cortada na
época por um ou outro regato que, sobretudo no Inverno, havia que transpor.
Não obstante a distância
visitávamo-nos e convivíamos com muita frequência porque, como era na aldeia
que existia o comércio e se exerciam as diversas profissões necessárias ao dia
a dia das pessoas, eles frequentavam muito a povoação e, porque os nossos pais
eram amigos, as visitas eram frequentes.
Lembrei-me de escrever sobre António
Espadinha e sua família quando ele há dias completou uns bonitos 97 anos de
vida e o seu neto Jorge teve a amabilidade de me enviar a foto que aqui publico
com sua autorização e porque me parece que tenho uma ou outra “istória”, uma ou
outra recordação que gostava que ficasse para a posteridade. Acho que tanto
eles, quantos os leitores que tiverem a maçada de me ler, entenderão a razão e
a lógica deste “rapazinho” que, já a “cheirar” os setenta, começa a lembrar-se
de muita coisa…
Recordo-me de António Espadinha homem
de estatura baixa, muito ágil e mexido e que se apresentava no Chouto sempre de
roupas muito limpas e cuidadas, com calças sempre bem vincadas e calçando com
evidente vaidade umas finas botas de cano curto e tacão alto que fazia questão
de fazer bem ouvir quando caminhava. Talvez usasse mesmo os chamados protectores,
umas pequenas peças de ferro que, pregadas na sola, nas zonas da biqueira e do
tacão, preservavam bastante o seu gasto e, naturalmente, calcadas na então
calçada de pedra das ruas da aldeia, faziam aumentar o som das passadas.
Apresentava-se assim aos domingos e nos muitos bailes e matinés dançantes que
por vezes também frequentava porque também era um bom dançarino e recordo-me de
o ver dançar com a esposa e com a filha Perpétua. Todos eles dançavam muito bem
e, pelo que agora tenho acompanhado no Facebook, parece que deixou boa
descendência nesse aspecto…
Nesse aspecto e não só…
Na verdade está na minha lembrança
também um “pequenino” “affaire” que criou e manteve durante um bom tempo na
aldeia e que na data fez movimentar as línguas do pessoal do pequeno povoado que
era o Chouto…
Não sei como acabou e se houve “proveitos”
– há quem garanta que sim… - e nem isso me diz respeito mas, da fama os
intervenientes não se livraram… Também não sei como começou e, aqui, digo
francamente, já me causava mais curiosidade saber dado que conhecia os
intervenientes e sabia os caminhos e ambientes que frequentavam, que eram algo
distintos e distantes, razão porque acho que começar aquele “affaire” deverá
ter requerido alguma sabedoria e algum jeitinho especial para António Espadinha
poder iniciar o envolvimento… Teve habilidade e ciência, sem dúvida!...
Um dado importante nesta situação é
que nunca soou para fora do ambiente familiar do nosso amigo que o caso tivesse
criado agitação no seio do seu lar mas também me recordo que, talvez mais de uma
vez, assim de raspão, sem eles notarem, ouvi o meu pai aconselhá-lo mais ou menos por estas palavras: “António Espadinha,
ganhe juízo!...”
Na verdade, não só porque eram amigos
mas talvez também porque, para se dirigir à minha casa, o nosso António
Espadinha tinha de atravessar o largo fronteiriço onde eventualmente poderia
ter um contacto visual mais facilitado com a outra personagem, eram frequentes as visitas do
nosso amigo ao meu pai, com quem tinha longas conversas…
Eram efectivamente bons amigos e aconteceu
até uma vez que António Espadinha e esposa estiveram algumas semanas hospedados na minha casa… Teve
isso como motivo o então chamado “resguardo” da sua “queima da orelha”…
Acontecia essa pequena “cirurgia” – será que posso chamar de “cirurgia”? Não
sei…- coisa que então se usava quando a pessoa sofria da velha e conhecida “dor
ciática”. Segundo julgo – não estou bem certo… - creio que se fazia uma incisão
num nervo atrás da orelha e chamavam-lhe “queimar a orelha”.
A coisa parece que era muito dolorosa
e complicada e exigia depois uma recuperação em que era necessário usar de
delicados cuidados para que não houvesse uma recaída na saúde. Como a casa da família
Espadinha era infelizmente muito modesta, nomeadamente de “telha vã” e sem
instalações sanitárias necessárias para se satisfazerem as necessidade fisiológicas
sem a saída do aconchego do lar, o meu pai ofereceu-lhe estadia na nossa casa,
mais nova e com melhores condições, para que ele pudesse ter um melhor “resguardo”.
Foi assim que, durante umas semanas usaram o meu quarto e eu dormia num
pequeno divã na sala de jantar.
Mas, não obstante a extensão desta
narrativa, tenho ainda mais duas situações nas quais entro directamente e que
me parecem interessantes para aqui deixar para a posteridade:
Uma, que terá seguramente mais de 50
anos, data de uma época em que teria por volta de 16/17 anos de idade. Estaríamos
então no início da década de 60.
Eu não era o que podemos chamar um “queque”
mas, vivendo em seio de família de um comerciante (meu pai) que vivia social e
economicamente um degrauzito mais acima dos meus companheiros de mocidade que,
por sua vez, na sua maioria eram trabalhadores agrícolas, eu acompanhava com
eles para bailes, feiras e festas com o melhor dos ambientes. Só num pequeno
detalhe este rapaz não fazia companhia plena… Era nos copos... Na verdade, o
meu pai praticamente não ingeria álcool, não tínhamos normalmente vinho em casa
(salvo quando recebiamos visitas e meu pai ia à taberna comprar um litro de vinho
para o convidado da refeição) e, assim, eu não tinha hábito de beber, nem tão
pouco o meu pai me deixava iniciar nessas andanças…
Mas aconteceu que uma bela tarde de
domingo – vá lá saber-se como a coisa teve início… porque eu não me recordo… -
com iniciativa certamente de algum sacana do grupo – e recordo-me do António
Rainha, do António Sebastião (já falecido), do Fernando Carvalho, do Manuel Espadinha e creio que também do
Diamantino Carloto, entre outros… - um deles lançou para o ar a ideia de começarmos no
Gaviãozinho e irmos até ao Chouto, de taberna em taberna, onde cada um teria de
beber um “penalti” que na altura custava um escudo e que correspondia a um
copo igual ao que agora nos cafés usam para o chamado “galão”. A coisa não se
fazia por menos…
Foi assim que começamos, creio que na
taberna do Domingos Duarte, passamos pela da Emília e avançamos de bicicleta para
o Chouto. Aí, a 1ª foi logo a do Isidro dos Santos, depois a do Manuel Sebastião que
ficava junto e, depois, onde paramos, porque a “carga” já era demasiada, no Polidoro.
Foi na taberna do falecido Manuel Polidoro, local onde agora temos o Café Costa e que,
face à “carga” excessiva, a coisa findou. E findou, nem sei bem como, porque só
me lembro de estar no Anafe de Cima, a 2 kms do Chouto, em frente da porta dos Espadinhas,
sentado num pequeno banco de palha, à sombra de uma oliveira que tinham na frente da casa com a Ti Lucinda naturalmente preocupada com o meu estado e sabendo da
austeridade do meu pai a dizer-me que ia fazer café para eu beber. Bêbado que
nem um cacho e aflito com a situação, na previsão do “temporal” que poderia
dali advir, devo ter ingerido umas quantas chávenas de café amargoso, sem açucar
e devo ter deixado passar uma, duas ou mais horas e, depois de nada mais me
lembro mas não me recordo do meu pai me ter “chegado a roupa ao pelo” ou de ter
ocorrido qualquer “guerra” em casa... O café amargoso da doce e simpática Ti
Lucinha e o tempo decorrido, fizeram reparar o estrago...
Mas, para findar, tenho ainda uma
última situação com o amigo casal Espadinha e, neste caso, foi a última vez que com
eles estive, já lá vão uns bons anos… Mais de uma dúzia!
Um dia, no meu trajecto de Lisboa para
o Chouto, ocorreu-me fazer um desvio e ir visita-los na casa onde sempre
moraram depois de terem deixado o Anafe de Cima e o Chouto. Fica
ali entre Almeirim e Coruche mas talvez mais próximo desta última vila do Sorraia.
A porta da rua estava aberta, eu
chamei e vi aparecer o amigo António Espadinha com a sua baixa estatura mas
ainda com bastante agilidade. À minha pergunta confirmou-me a sua identidade e
eu disse-lhe que era fiscal e andava a ver quem tinha a licença de televisão em
dia (na altura os portugueses tinham de pagar uma taxa em separado, coisa que
agora vem na factura da energia electrica). Ele, que não me reconheceu, não se
mostrou preocupado e foi buscar um saco de plástico com uns quantos documentos
dentro. Peguei nos papeis, olhei para eles e disse que ele ia ser autuado porque aquilo estava mal… Não se mostrou
alarmado e, eu, sem que ele tivesse tempo de reagir, disse-lhe que o ia autuar
mas que antes, para que não pensasse que eu era algum burlão, me ia identificar.
Puxei então do Bilhete de Identidade e mostrei-lhe. Reacção rápida do amigo
António Espadinha: Volta-se para dentro da casa e grita: “Lucinda? Anda cá!
Está aqui o Victor!”
Deixou-me de água nos olhos, confesso!
A voz doce e afável – muito afável! –
de Ti Lucinda fez-se logo ouvir enquanto se dirigia para a porta: “Ai o Victor!
És tu, Victor?” Um encanto, achei!
Abraçamo-nos comovidamente e trocamos
sentidos e amistosos – muito amistosos! – cumprimentos e foi uma delícia! Uma
delícia!
Hoje, pelo que me informam, repetição
de igual cena já não será possível… O amigo António Espadinha, embora careça de
força nas pernas, está perfeitamente lúcido e bem de cabeça mas, com Ti Lucida,
o Alzheimer traiu-a e traiu todos os que tanto a apreciavam e admiravam na sua
delicadeza e trato de excelência na sua voz doce, meiga e única. Tem ocasiões em
que não reconhece os seus…
Os tempos passam e a velhice tudo traz…
Infelizmente!...
Resta-me desejar que os dois belos e
amigos membros do casal Espadinha vivam o melhor possível, para alegria e prazer
dos seus!
EM TEMPO – No Casal do Anafe de Cima
nos dias de hoje já ninguém habita e deixo aí uma foto do que é hoje o que
antes foi uma aglomerado habitacional onde morava talvez meia centena de
pessoas. Tempos passados... Tempos que já não voltam.