segunda-feira, 4 de março de 2019

O TESTAMENTO DO SR. FERREIRA


Naquela manhã, de dia que o tempo já levou há uns bons anitos, com o Tó Zé entrei no Cartório da cidade e, sentado na frente da secretária da única funcionária em serviço, encontramo-lo bem vestido, bem penteado, bem apresentado, vendo nele o homem septuagenário, por ventura mesmo octogenário, típico sujeito de classe média e vida estável..

O Tó Zé, num aparte de boca pequena, dir-me-ia que era pessoa muito conhecida e considerada por via de durante anos ter gerido um agência bancária na cidade e, dirigindo-se-lhe, cumprimentou-o amigavelmente ao mesmo tempo que fazia a apresentação:

- Victor, o sr. Ferreira! Como está sr. Ferreira?

- Benzinho! E os srs., como estão? - retorquiu, amável.

Mais meia dúzia de palavras de cortesia e circunstância e a Notária, nossa velha conhecida e até, vamos lá, amiga de outras circunstâncias e locais, ouvindo e reconhecendo as nossas vozes saiu do gabinete e, afectuosamente, cumprimentou-nos, enquanto se regozijava com a nossa presença:

- Olá, como estão? Bem, certamente! Ainda bem que chegaram porque, se não se importarem, assinarão como testemunhas um testamento que o sr. Ferreira deseja fazer!

Porque na vida nunca tinha sido testemunha de tal situação – há sempre uma 1ª vez para tudo!… - achei interessante e curioso e logo assenti e o amigo Tó Zé secundou-me igualmente e, então, a senhora informou-nos do assunto versado no testamento:

- O sr. Ferreira, que está lúcido e em pleno uso das suas faculdades, como os srs. vêem, deseja que fique em testamento que, após a sua morte, quer ser sepultado na sua terra natal, Moimenta da Beira.

E o sr. Ferreira, virando-se para nós, acrescentou:

- Depois da minha mulher morrer casei com outra senhora e agora, embora ela diga que me levará para Moimenta da Beira, eu desconfio que ela para não gastar tanto dinheiro - e eu deixo cá esse e muito mais!… -, mas para não gastar tanto, acho que ela não vai levar-me para a minha terra e eu quero ser sepultado em Moimenta da Beira.

Ouvindo, confesso que me contive um bocadinho para não abrir a boca de espanto!… 

Na verdade, se testemunhar e assinar este tipo de vontade de um cidadão, achava a cena para mim além de inédita algo patusca, ainda mais a achei quando soube a razão do desejo do senhor…

Refeito do espanto fui e fomos para o gabinete e a Notária ali redigiu o testamento e, feito isso, assinamos todos: o sr. Ferreira, como testador, o Tó Zé e eu como testemunhas da sua vontade e, por fim, a Notária a oficializar o acto.

Levantamo-nos mas, eu como ainda não estava completamente convicto do acerto da situação, questionei o sr. Ferreira:

- Mas, sr. Ferreira, se o sr. agora vai entregar à senhora o testamento ela, na sua morte, pode decidir não o usar e resolver sepultá-lo no cemitério aqui da cidade?

Ao que o sr. me respondeu de imediato:

- Mas eu não vou dizer-lhe que o fiz nem entregar-lhe o testamento! Vai ficar na posse da minha irmã e já acertei isso com ela!

Boa! O sr. Ferreira pensou em tudo.

O sr. Ferreira pensou em tudo e eu penso que não mais vou esquecer-me dele e do seu testamento sempre que ouça falar em… Moimenta da Beira.

Moimenta da Beira onde, provavelmente, dado o tempo decorrido, nos dias de hoje já repousa o cadáver do sr. Ferreira por sua própria vontade e à qual, talvez, a minha assinatura tenha ajudado…

Ele há coisas!...

5 comentários:

Suzana Pratas disse...

Tantos srs. Ferreiras que haverá por aí. Alguns já sem recursos para pedir alteração seja do que for. Tudo seria mais fácil se houvesse respeito pela vontade do outro. Conheço casos em que as pessoas até compraram os caixoes e pagaram o seu próprio funeral em vida, só psra garantirem que, se vontade houve que não não foram cumpridas em vida, outras certeza havia que serião cumpridas em morte. A história é irónica, mas reflete muito a atualidade de hoje em dia. Sobretudo das pessoas com mais idade.
Tantos Srs. Ferreira por aí...

Victor Azevedo disse...

Sem dúvida que isso é verdade.
Neste que relato, para além de achar patusca a razão do testamento, achei interessante a minha 1ª vez com testemunha de uma vontade fosse de estreia tão ... mórbida...

Suzana disse...

eheheeheh...Há sempre uma primeira vez!

É por isso que o grande valor que as recordações nos trazem, é a revelação dos momentos da vida que tivemos. Momentos esses, quando acontecem, nem sempre pensamos neles com o carinho que as recordações nos permitem pensar e recordar, e reviver.
Eu gosto muito de recordações. Pois com elas reconheço a importância e a riqueza de cada momento. E este reconhecimento, acho que só se consegue, recordando.
Eu gosto muito, que a recordação me traga memórias, do que já me tinha esquecido. DE certa forma, é como juntar a os pedacinhos todos da vida. Fica a cada pedaço, mais completa.
Continue com estes relatos, que adoro ler e saber..
Abraço

Victor Azevedo disse...

E continuarei... até que a fonte seque...
Obrigado pelas visitas e pelos comentários!

Suzana disse...

Nada a agradecer! É um gosto...
Noite descansada para vocês!