quinta-feira, 21 de março de 2019

A PROMESSA DA AVÓ MARIA


A avó Maria (Maria do Rosário, de seu nome completo) ou “Ti Maria Arroteadora” (como vulgarmente era conhecida e referenciada), de figura algo robusta, larga, sendo um pouquinho para o gordo, quiçá obesa - exactamente como se apresenta na foto que junto -, de vida sempre ligada ao campo e à agricultura mas que, desde que me lembro, sempre me habituei a ver como dona de casa, a chamada doméstica que tratava da confecção das refeições, das roupas e da limpeza da própria habitação enquanto o marido, meu avô Gregório, trabalhava no arroteamento e cultivo das terras arrendadas ao oficial de marinha, morador na capital, que visitava a propriedade muito escassamente, limitando-se a receber pelo S. Miguel (29/30 de Setembro) a contratada renda composta de dinheiro e géneros, era uma pessoa muito franca e expressiva (todas as 4 filhas que criou o eram igualmente, muito francas e abertas), fazendo um evidente contraste com o marido, algo introspectivo, de poucas falas mas sempre simpático em igualdade de circunstância com a esposa. Completavam-se magnificamente!

Toda a sua vida de carrapito na cabeça – cabeleireira era luxo inacessível e por isso inviável, até porque o corte do cabelo não era hábito na época para as “mulheres do campo”… -  era analfabeta como o marido mas ambos sabiam fazer contas de cabeça como poucos os que sabiam ler e escrever, guardando ainda de avó Maria a imagem de mulher muito séria e honesta, muito trabalhadora e reservo também para sempre na minha memória a sua figura arredondada, sempre de lenço na cabeça, num pequeno banco de assento de palha, cortando em estreitas tiras, alguidares e alguidares de couves que, depois, misturadas com farelo e água, serviam de alimento aos muitos bandos de perus que criava continuamente para vender aos compradores vindos da capital. Sentada em frente da porta da casa, à sombra de uma frondosa acácia, de pernas arqueadas e abertas, de saia comprida e larga e de alguidar na sua frente, muitos braçados de folhas de couve cortou a minha avó! Muitos!

Tanto a minha avó e avô como as suas 4 filhas tinham desde bebé um especial carinho e afecto pelo neto e sobrinho Victor. Era o 1º menino na família e... o 1º é o 1º!… E bem me recordo dos carinhos que me dispensavam, chegando ao ponto de, em certas noites que por ali dormia, elas, as minhas tias, me disputarem para que dormisse com cada qual. Era muito criança mas lembro-me de com uma dormir, chovia e trovejava muito e, como o modesto quartito era de telha vã, uns borrifos de água da chuva intensa caiam-me por vezes na carita o que muito me impressionava…

Ora, foi certamente fruto de todo este carinho e afecto que sempre me dedicaram que levou a avó Maria a viver preocupada e triste quando o neto Victor, já crescido e homem, foi mandado para a guerra. Na época era o destino certo de todos os rapazes chegada a idade do serviço militar obrigatório e, por isso, não havia que estranhar… Todos sabiam isso mas, chegada a hora e batendo à porta dos mais queridos, o sentimento batia bem mais forte…

Mas o netinho foi e voltou são e salvo e, chegado de novo à terrinha e recebido entusiasticamente por familiares e amigos, subitamente ouviu da avó Maria esta surpreendente confissão:
- Victor, enquanto por lá andaste prometi a Nossa Senhora que, se voltasses bem, devias assistir a 3 missas com uma vela acesa na mão.

Eu nem queria acreditar no que tinha ouvido e, espantado, abri bem a boca:
- Huuuum?! O quê? A avó fez uma promessa para ser eu a cumprir?
- Pois! Foi assim que eu prometi a Nossa Senhora!

Fiquei deveras atrapalhado… 
Não podia, por um lado, dizer que não há minha dedicada e querida avó mas, por outro, também não tinha o mínimo desejo de lhe executar aquela patusca promessa… 

- Onde já se viu uma pessoa fazer uma promessa religiosa para… outro cumprir, avó?- questionei-a.

- Não sei! Foi assim que eu prometi e tu vieste bem. Agora é de cumprir.

Estavamos neste impasse de decisão, com eu mais que atrapalhado com a questão, quando o meu pai, astuto e sabedor como era, veio em meu auxílio, sugerindo:

- Olhem uma coisa: e se perguntarmos ao sr. prior se ele tem alguma ideia sobre isso, de forma a que se possa cumprir a promessa da avó?

A avó Maria, entre compreensiva e ingénua:
- Está bem! Domingo perguntamos ao sr. prior.

Eu, conhecendo a ratice e inteligência do meu pai, “vi o filme” e aprovei, logicamente, a brilhante ideia.
- Boa ideia! Não é avó? Falamos com o sr. prior!

E falamos. Falamos no domingo seguinte, quando os dois fomos à sacristia, antes da missa, apresentar a promessa e ouvir do prior a forma de solucionar a questão…

Ele ouviu da avó Maria a promessa feita e de mim a minha atrapalhação e sugeriu de pronto:

- Então, para evitar esse esforço ao Victor, eu digo à Dª Maria que ponha nessas 3 missas a vela acesa num castiçal especial, que será colocado junto ao altar e a promessa ficará assim cumprida na mesma. Está bem, Dª Maria?

A doce avó Maria concordou e assim se fez e ela ficou de consciência tranquila para todo o sempre.

Só não soube, nem desconfiou minimamente que, durante a semana, eu e meu pai tínhamos dado conta da situação ao amigo padre Zé, tendo da conversa resultado essa airosa solução para a patusca promessa da querida e muito saudosa avó Maria… 

Uma querida!.

Que descanse em paz, que bem merece!

E que Zé Azevedo e filho não acabem penalizados pela pequenina habilidade!...

4 comentários:

Suzana Pratas disse...

ahahahah...!! Estou farta de rir à gargalhada! Parece que estou a ver a situação a acontecer!
"Então a avó fez a promessa para eu cumprir?!!" ehehhehe
Coitada, ficou a sofrer e ainda tinha que pagar a promessa?! Acho muito bem que o sofrimento seja partilhado. É assim mesmo....ehehehehe

Grande avô! Grande coração do padre Zé...
Adorei a história!!

Beijos padrinho

Victor Azevedo disse...

Quase sempre é necessária inteligência e experiência de vida para contornar soluções surgidas no quotidiano.
Foi o caso, Susana.
Na altura a situação foi muito comentada na família e a doce avó Maria criticada por fazer promessa para outro cumprir mas, ela, coitada, fê-lo no melhor dos propósitos e convicta que estava a ser amiga do neto e correcta no procedimento.
E o castiçal foi colocado no chão, junto ao altar e a avó Maria ficou de consciência tranquila. E...
o neto aliviado...

Suzana Pratas disse...

É sempre tão bom rever esta deliciosa história 🙂

Victor Azevedo disse...

Concordo, Suzana. E, no meu caso, que as vivi, por incrível que possa parecer, revejo-as na memória como se tivessem ocorrido há escassos dias atrás. Se gostava muito de cumprir o prometido pela Avó Maria, por outro não tinha a mínima vontade nem pachorra de passar as missas - e logo 3! - de vela acesa nas mãos... A solução encontrada foi a mais airosa e, vamos acreditar, a promessa foi cumprida.