segunda-feira, 31 de julho de 2017

GUERRA COLONIAL - A DISCIPLINA


Creio que a ocorrência aconteceu exactamente no mês de Julho de 1969, faz agora 48 anos e recordo-me disso porque foi no mês que o Homem chegou à Lua pela 1ª vez. Lembro-me de, muito entusiasmado, ouvir na cama, num pequeno transístor, toda a reportagem da então Rádio Eclésia, de Luanda que, por sua vez, fazia a transmissão directa da Rádio Renascença, de Lisboa. E recordo-me de no outro dia de manhã, ao pequeno-almoço, ter dado conta aos soldados desse enorme feito dos homens e um rapaz, que os outros logo secundaram, me questionar:
- E o meu furriel acredita nessa grande mentira?

Bom, mas com esta coisa do Homem na Lua afastei-me do tema que hoje pretendo abordar: a disciplina militar na Guerra Colonial.

Porque a vivi mais de 2 anos e porque também a senti - de que o caso que hoje aqui venho relatar é um bom exemplo – entendo que, como noutros campos, em que muito precisávamos de outra formação, o sofrermos e o experimentamos, a disciplina e a ordem eram factores em que avançávamos para a guerra totalmente impreparados. Sem mesmo um mínimo de preparação psicológica. Ceguinhos de todo!

No meu caso pessoal, entregaram-me uma secção de 10 homens de um pelotão e, eles e eu que nos desenrascássemos perante os mais diversos perigos e dificuldades que nos surgissem. E não podemos esquecer que tínhamos a convivência diária, hora a hora, minuto a minuto de homens que naturalmente tinham  as mais diversas personalidades, sentimentos e humores e que, sobretudo, viviam permanentemente armados com espingardas automáticas. Espingardas automáticas que… matavam mesmo…

Sem formação, sem preparação, valeu-nos a calma – a muita calma! – e, sobretudo, o bom senso.

No meu caso, que comandei isoladamente em muitas situações de operações de patrulhamento ou de manutenção e vigilância em destacamentos militares ou civis, homens da minha secção, foram vários os casos que surgiram e que tivemos de ultrapassar.

A situação que hoje aqui trago e que, porventura, foi a mais complicada e difícil de resolver, aconteceu então nesse mês de Julho de 1969, tempo em que estávamos a apenas 3 meses do término dos 2 anos da nossa comissão.

Estava a comandar uma secção de 10 rapazes (2 cabos e 8 soldados) na Fazenda Lifune, a cerca de 100/130 kms a norte de Luanda, junto ao Litoral mas ainda não muito distante do famoso Norte de Angola, onde acontecia tanta “porrada” e muitas mortes ocorriam. Estavamos no litoral mas não estávamos tão longe das zonas mais perigosas quanto isso.

Era uma grande fazenda de grandes áreas de cultivo de palmeiras de palma, de onde se colhia o grandes cachos de dem-dem de onde, por sua vez, depois saía o óleo de palma.

Com esses militares mantínhamos a presença, vigilância e ordem dentro e junto às instalações da fazenda que incluíam, para além das casas de habitação, os armazéns e a fábrica.

Mas não o fazíamos sozinhos, o que seria impossível com tão poucos homens. Um corpo de milícias para-militares, formados e treinados pelas tropas portuguesas, ajudavam-nos na missão, numa ajuda que consistia sobretudo na vigilância nocturna em postos montados em redor das instalações da fazenda. Os milícias apenas tinham que, periodicamente (hora a hora, ou de meia em meia hora, já não me recordo…), bater num grande ferro, numa sequência que o nosso sentinela atento no torreão no cimo do prédio maior da fazenda, controlaria para sentir que todos estavam alerta.

Era este o nosso trabalho mais importante e responsável.

Acontecia então que, enquanto eu dormia no 1º andar (na janela da direita que se vê na foto do prédio que junto), os soldados pernoitavam no rés-do-chão do prédio contíguo e, para subirem ao torreão, usavam uma passagem interior que dava acesso à escada existente no prédio e que terminava encima abaixo do torreão. A escada era construída em madeira e, como também dava acesso ao meu quarto, era-me familiar acompanhar durante a noite e madrugada a audição das madeiras a ranger no patim ou nos degraus à passagem dos militares na sua rendição no posto sentinela.

Tudo decorria dentro da maior das normalidades quando, numa bela noite, - vá lá saber-se porquê?...- eu acordo e começo a pensar que não ia ouvindo os passos dos homens nas rendições…

Esperei atento mais uma hora aprazada para nova rendição e… nada de passos, nada de barulho na escada. Aí, alarmei-me!..Saí da cama, vesti-me, peguei na "menina" (G3 que sempre “dormia” comigo encostada à parede junto à almofada da cama) e saí para a escada subindo o mais silenciosamente possível, porque não sabia o que me esperava e, chegado ao torreão o que vi, para minha enorme surpresa?

De luz acesa – friso: de luz acesa! - 4 rapazinhos (1 cabo e 3 soldados) despreocupadamente jogavam à lerpa!!!

Isso mesmo, de verdade: em plena guerra, com noite serrada, num posto de sentinela, de luz acesa, jogavam às cartas a dinheiro!

Querem coisa mais grave?

Fiquei chocado, alarmado, indignado e até mesmo ofendido porque, eu, pela forma respeitosa e até cavalheira como sempre os

chefiava, não merecia tamanha falta de respeito.

Recompus-me da surpresa e reagi de imediato e, vendo-os também assustados, limitei-me a perguntar qual dos 4 deveria estar de sentinela naquela hora. Esclarecido, mandei os outros 3 para a cama, avisando-os que de manhã conversariamos e desci para o meu quarto para entrar na cama e, a partir daí, dormir tanto como estou agora a dormir… 

A escassos dias de terminar todo aquele imenso pesadelo da nossa terrível guerra, tinha entre mãos o mais difícil e complicado problema disciplinar para resolver!

E como fazer? O caminho “obrigatório” e que muitos seguiriam, seria participar a ocorrência e aguardar os seus efeitos. E quais seriam eles? Sem dúvida os 4 ficariam de imediato detidos e, logo de seguida seriam enviados para zona muito e muito mais perigosa onde, de certeza, correriam risco de vida. Teriam mesmo eventualmente o seu tempo de comissão aumentado em mais alguns meses.

Pensei nisso, imaginei que se isso acontecesse e resultasse por acaso na morte de alguns deles, como depois me sentiria? Não sentiria problemas de consciência?

Todavia eu não poderia vacilar na minha decisão de os penalizar sob pena de, se isso acontecesse, nesse momento acabar-se ia o chefe, "morreria" o Furriel Chefe de Secção e teria de sempre os carregar encima dos ombros com desobediências, subalternizações e desordem sem fim. Não poderia transigir, custasse o que custasse.

Não dormi e, como muitas vezes a almofada é boa conselheira, nela encontrei a solução: o cozinheiro Nunes estava sempre a queixar-se-me que precisava de lenha rachada para o fogão e, como a pilha da dita era bem volumosa, estava ali um bom castigo alternativo para os rapazinhos. (Existia uma escala para o rachar da lenha mas, chegada a vez, o escalado chegava mas… rachava o menos possível e ás tantas a lenha faltava na fornalha…)

De manhã, chegada a hora do pequeno-almoço, compareci e, depois de uma pequena prelecção sobre a gravidade operacional e disciplinar do ocorrido, transmiti-lhes a minha “sentença”, dizendo que tinham 3 dias para a cumprir (a pilha da lenha era grande mas eles eram 4...) e, quando esperava um alívio da sua parte, por saberem que não participaria oficialmente a situação, salta-me o cabo Trindade, logo secundado pelo soldado Paulino (o mais “atravessado” de todos os 10!):
- Eu não racho lenha nenhuma! – sentenciou o Trindade.
- E eu também não! – secundou o Paulino.

Grave! Muito grave! Gravíssimo!

Se a situação já era complicada, mais complicada estava.

Irritado, tentei controlar-me e, secamente, respondi-lhes:
- Pensem e ponderem bem e com muito cuidado na vossa resposta e na vossa decisão. Dou-vos o tempo de subir ao quarto e começar e acabar de escrever o que vou redigir. Feito isso e entregue que seja ao nosso Alferes, o que vos vier a acontecer,  à vossa vontade pertence.

Deixei-os e subi ao quarto e, lá chegado uma angustia imensa me assolou... Eu não queria participar deles mas, eles não me deixavam outra alternativa... Que fazer? Recuar não podia.

Arranjei papel e caneta e, arrastada e demoradamente fui escrevendo, escrevendo e aguardando que me batessem à porta do quarto… E, acontecendo isso, duas hipóteses poderiam surgir: ou vinham armados e exigiam que rasgasse a participação, ou usavam da inteligência e, retribuindo o meu bom senso, recuavam e aceitavam a minha penalização.

E a 2ª possibilidade aconteceu, felizmente!

Tinha eu o rascunho do texto da participação na posição de escrita que aí deixo, quando ouço bater à porta e fui abrir num misto de receio e esperança...

Entraram os quatro e o cabo Trindade falou:
- Meu furriel, nós vamos rachar a lenha em 3 dias.

Respirei de alívio. Pedi-lhes uns abraços, que foram trocados com franqueza e saíram.

E a lenha foi rachada. 

E eu não participei dos loucos rapazes.

E eles não foram castigados e recambiados para zona de intervenção perigosa.

Graças ao bom senso! 

Meu e deles!

EM TEMPO – Seis anos atrás, num dos regulares almoços que vamos tendo com os velhos camaradas da guerra, o cabo Trindade apareceu na “Pateira de Fermentelos” e recordamos, ainda com alguma emoção, o perigoso episódio. “Eu é que lhe fui dizer que  rachavamos a lenha…”  lembrou-me. 
Na foto, Trindade é agora o “velhote” de cabelos brancos, na ponta esquerda.




4 comentários:

Unknown disse...

Pois é amigo,foi por brincadeiras desse gênero que muitos dos nossos soldados lá perderam a vida.pois a ma preparação e o desleixo de alguns dava nisso,e depois quando eram chamados a atenção ainda regulavam.

Victor Azevedo disse...

Obrigado pela visita e pelo comentário!
A situação na altura foi algo complicada de ultrapassar mas venceu o bom-senso. Mas não foi fácil, não.
Tive um grande problema de consciência para vencer e acho que o resolvi bem.
Volte sempre!
Victor Azevedo

António da Luz disse...

Caro amigo e vizinho Victor entre as localidades de Chouto e Ulme deste concelho da Chamusca a que pertencemos orgulhosamente neste coração do Ribatejo... gostei do teu depoimento em que a nossa geração foi tirada aos nossos pais que com bastante sacrifício nos criaram sem subsídios para uma incerteza do regresso... Tu por Angola eu pela Guiné felizmente voltamos a ponto de puder dizer algo sobre o que enfrentamos...um grande Abraço.

Victor Azevedo disse...

Muito obrigado, caro António da Luz!
Na verdade foram tempos difíceis os que vivemos naquelas longínquas paragens e foram, pelo menos para mim, quase 4 anos que me roubaram em plena mocidade mas em que nada havia a fazer porque, ou íamos ou fugíamos do país para não ser incorporados. Eram as alternativas...
Mas felizmente regressamos vivos sendo que muitos outros tristemente por lá se finaram sem glória nem proveito,
ao serviço forçado de interesse de uns quantos.
Um abraço, amigo!