Lisboa, 8 de Junho de 1984
Meu prezado amigo,
Eu não pudia deixar-lhe de manifestar o que me vai na alma sensível pela surpresa que Deus lhe inspirou por mim…
Agradeço-lhe muito grata, Victor.
É realmente bondoso, porque pensa nos semelhantes.
Tenho amor à minha terra, onde tive até aos 8 anos a minha primeira infância. Depois fui para onde me deram uma educação que me permitiu dar a bastantes crianças tudo o que ensinar-lhes na cultura, na moral e na religião.
Naquele que o Victor fez ouvir na Renascença está a minha crença a Jesus que me ilumina e me concede a coragem e a resignação.
Felicito-o no valor, na boa esposa e nos filhinhos que tanto achei encantadores.
Beijinhos para eles e para a Hortense de quem sou amiga.
Um grande abraço da sincera amiga que pede a Jesus a bênção do vosso lar.
Emília de Jesus Montalvo
Fruto de tudo guardar mas também, o que parece lógico, como um natural sentimento de gratidão pelo conteúdo, satisfação pela inusitada forma e apreço pela autora desta belíssima missiva em “braille”, fez com que chegasse até hoje este valioso documento – valioso pelo menos para mim que, pela 1ª e única vez, recebi una carta assim redigida – e, desta forma dar motivo à criação desta minha crónica de hoje, iniciada pela “tradução” da carta em “braille” que à direita aqui também se deixa.
Foi sua autora Dª Emília Montalvo, senhora e amiga que, não sendo exactamente minha familiar directa, também não estava muito distante disso dado que era irmã de minha tia Ilídia, casada com meu tio Joaquim Azevedo, irmão de meu pai, sendo por isso amiga muito próxima o que deu azo a contactos mais ou menos frequentes. Na verdade, visitei várias vezes Dª Emília na Escola António Feliciano Castilho, em Lisboa, onde vivia e professava e também em diversas ocasiões convivemos na casa de meus tios, onde igualmente vivia a sua já idosa mãe, acontecendo isso quando a senhora passava férias na Chamusca.
Nascida na Chamusca, Emília de Jesus Montalvo, de seu nome completo, veio ao mundo com a visão como qualquer criança sem deficiência, mas uma terrível doença retirou-lhe a vista e a menina ficou totalmente cega. Desconheço mais detalhes dessa doença porque, por incrível que pareça, nos muitos contactos tidos com Dª Emília, com minha tia e até com a mãe de ambas, nunca tive coragem de tal assunto abordar... Achava que, para tanta angústia, já bastava a vivida pelas próprias nas suas vidas, no seu dia a dia...
Cega a menina e sentidas as dificuldades económicas dos progenitores foi conseguido o seu internamento no Asilo Escola António Feliciano Castilho onde a criança cresceu, estudou, educou e desenvolveu a sua personalidade bem vincada e apreciada. Com efeito, Emilia, inteligente e interessada, depressa se evidenciou e em pouco tempo atingiu mesmo o professorado, de forma que aos 18 anos já dava aulas na própria escola.
Surgiu então a poesia na sua vida e, dai a ver publicadas suas obras em diversos jornais e revistas, de entre os quais se destaca o “Diário de Notícias”, foi um pulo. Colaborou também, tanto quanto julgo saber, com o Teatro Amador da sua Chamusca natal, da qual falava sempre com uma grande paixão. Para além de se expressar em diversas línguas de onde sobressaia o francês, o inglês e até o esperanto, com o curso de conservatório tornou-se também professora de piano e canto, numa belíssima e muito interessante vida onde sobressaia sempre a sua exemplar educação, o seu belíssimo trato e a sua impressionante serenidade física, psicológica e até poética. Também o timbre de voz e a forma como se expressava, dividindo de maneira bem característica as sílabas, completando as palavras de forma verdadeiramente límpida e impecável, admirava os interlocutores menos habituados. Também o seu porte físico e a calma e serenidade com que estava e se movia, deixavam impressionados tudo e todos. Um ser humano “sui generis”, sem dúvida.
Nesta carta que hoje trago a público Dª Emília manifesta reconhecimento por algo que sobre ela escrevi e foi lido aos microfones da Rádio Renascença algo que, francamente, já não me recordo… Lembro-me que na época, num programa de António Sala, por vezes foram lidas 2 ou 3 coisinhas que escrevi mas… já não me lembro o quê… Por via desta carta deduzo que uma delas foi sobre D. Emilia Montalvo, possivelmente alguma ou algumas poesias de sua autoria, a exemplo desta que também aí deixo…
Resta acrescentar que Dª Emília Montalvo nasceu na Chamusca, a 7 de Maio de 1904 e veio a falecer em Lisboa, no Lar de Nossa Senhora da Saúde, onde nos últimos anos esteve internada, no dia 16 de Maio de 1989.
EM TEMPO - Dias depois de redigir esta crónica surgiu na net uma bonita e interessante foto mostrando-nos Dª Emília Montalvo a escrever algo em braille e que, com a devida vénia,resolvi trazer para aqui, integrando-a no corpo do texto.
EM TEMPO - Dias depois de redigir esta crónica surgiu na net uma bonita e interessante foto mostrando-nos Dª Emília Montalvo a escrever algo em braille e que, com a devida vénia,resolvi trazer para aqui, integrando-a no corpo do texto.
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