Embora assente em cartas
da época, como esta datada de 14 de Junho de 1958 que aqui junto e outras que
escrevi nos anos de estudo em Lisboa e que dirigia a meu pai e ele guardou e eu
preservei também e que me ajudaram a localizar no tempo todo aquele período, o meu
escrito de hoje é baseado muito nas minhas memórias dado que o episódio que
esteve na origem do rompimento das relações entre a família dos meus padrinhos
e a minha, pela sua importância e pela dor provocada, isso bem justifica.
É necessário frisar desde
já que o relacionamento entre as famílias era excelente até aí, bastando para
isso salientar que os meus padrinhos antes de o serem já tinham sido padrinhos
de casamento do meu pai e que eu estava a convite deles hospedado na sua casa e
convivendo diariamente como se seu filho fosse, não esquecendo ainda que bastas
vezes em fins-de-semana e sobretudo férias de Verão os convívios entre todos
eram frequentes e meus padrinhos e filhos adoravam estar no Chouto. Ficaram famosas
as vivências das meninas, jovens e bonitas adolescentes Teresa e Gaby, de
calções pelo Chouto – um Chouto na época, sem televisão, jornais e fracas
comunicações e por isso muito desfasado das “modernices” da capital… - ou
tomando banho, mergulhando e nadando num tanque de água de regas no Anafe do
Meio, do sr. Estêvão Maia! Para as pessoas de mais idade na aldeia aquilo era
uma tontice de gente claramente sem maneiras… Junto aqui uma foto dos dois talvez
junto do dito tanque de água onde as meninas se banhavam.
Vivia-se portanto este delicioso
ambiente quando, subitamente, uma insólita e aparentemente inofensiva
ocorrência tudo perturbou e tudo alterou... Radicalmente.
O facto aconteceu sensivelmente
entre os dias 6 e 11/12 de Junho de 1958. Nesse intervalo de tempo, uma
coisinha aparentemente sem importância, veio alterar toda a minha vida de
estudante…
Morávamos no Bairro do
Restelo, na Rua Soldados da India, exactamente a última rua do bairro encostada a Algés e frequentávamos o Liceu de Oeiras. O trajecto diário era feito por
comboio desde a estação de Algés e, até lá, íamos a pé, de casa, num percurso de 5
a 10 minutos. Para encurtar caminho atravessávamos por um estreito carreiro um
terreno baldio que estava sempre cheio de ervas e sobretudo cardos muito altos,
daqueles que dão como flor as conhecidas alcachofras. Era essa “cultura” exactamente que ali tínhamos naquele inicio de
Verão e últimos dias de aulas do ano lectivo. Logo de seguida eu iria de férias para o Chouto
e, foi lá, a 14, que recebi a carta do Tó que junto aí e que me dava conta das
notas e onde o rapazinho tem o cuidado de “gritar”, provocador, antes de as
notas escrever: “As tuas notas são piores do que as minhas”… eh!eh!
Mas, voltemos à “istória”:
Atravessávamos nós - eu e o Tó - o carreiro quando, subitamente, reparamos que do meio dos
cardos e sob o efeito dos raios solares, vinha um reflexo de qualquer coisa brilhante…
Curiosos, embora picando-nos com os bicos dos cardos, fomos ver… E que
encontramos? Encontramos dois grandes, cromados e luzidios faróis de automóvel, daqueles
que são fixados exteriormente encima do para-choques ou até mesmo dos guarda-lamas
dianteiros. Via-se que tinham sido serrados pelo seu pé…
Estávamos com pressa
para apanhar o comboio e já não voltamos a casa para ali os guardar… Logo a
seguir tinha o começo da Av. Vasco da Gama e, no 1º prédio, tínhamos a mercearia
onde a minha madrinha era cliente e por isso o merceeiro conhecia-nos e foi a
ele que pedimos se nos guardava o achado até regressarmos. O senhor acedeu e,
na volta ali levantamos os faróis pondo em marcha o nosso plano… Atravessamos a
avenida e no outro lado, um pouco mais acima, tínhamos uma oficina auto. Foi aí
que nos dirigimos perguntando ao mecânico se queria comprar os faróis…
Não me lembro, não sei,
não vi mais nada e só me lembro que demos por nós detidos na esquadra da polícia de
Pedrouços... Lembro-me de uma pequena sala de velhas paredes, no 1º andar, de
soalho muito velho e esburacado e com uma janela pequena de grades exteriores.
Coisa horrível! Estávamos assim... detidos! Presos como ladrões ou, no mínimo, suspeitos de termos
cerrado e roubado os faróis! Nós, crianças de 13 e 12 anos e meio, de calçõeszinhos
de ir ao colégio, de aspecto de meninos de coro, estávamos encarcerados que nem
gatunos!...
Dissemos quem eramos e,
passadas uma ou duas horas, lá apareceram os meus padrinhos que acabaram por
levar para casa o filho Tó e o afilhado Victor, envergonhados e sem saber onde
se meterem… Ralharam-nos muito mas não bateram. Na verdade tínhamos actuado um bocadinho
mal mas jamais suspeitávamos na encrenca em que nos estávamos a meter…
Logo, logo de seguida -
um/dois dias – acabaram as aulas e eu fui de férias para a aldeia e, lá
chegado, bem-disposto porque sabia pelos "pontos" feitos que tinha passado de ano e, sem querer
estragar a festa e, talvez e principalmente, com receio que o meu pai me chegasse
a "roupa ao pelo”, resolvi nada contar ao meu pai sobre essa vergonha porque
passara e deixei correr os dias… Foi esse mais um erro meu…
Passadas umas boas
semanas, bem mais de um mês, recebe o meu pai uma carta do padrinho Cerqueira
muito, muito dura. Talvez mesmo violenta!... Li a carta depois várias vezes
porque o meu pai, além de ma ter lido, tinha-a numa gaveta da secretária e ainda
hoje me interrogo como raio o meu padrinho, sendo uma pessoa tão cortês, afável
e ponderada, antes de escrever aquela carta tão dura ao afilhado Zé, não pensou,
num só momento sequer que ele poderia desconhecer totalmente aquela “istória”…
Contava ele que tinha sido incomodado sobremaneira com aquilo, tinha sido
chamado à Judiciária umas quantas vezes e tinha-se visto em sérias dificuldades
para conseguir que o processo fosse arquivado. Mas, finalmente, já estava arquivado naquela data!...Contava isso e mostrava-se muito
incomodado pelo afilhado não se ter minimamente preocupado com aquela actuação
do filho que tantos dissabores lhe causara. Estava verdadeiramente surpreendido e ofendido com o afilhado e compadre Zé!...
Como é bom de ver o meu
pai ficou muito melindrado com as palavras do padrinho, deu-me um raspanete dos
valentes e, logo de seguida, decidiu que eu não voltaria mais para Lisboa para
casa dos padrinhos e disso mesmo deu conta ao padrinho Cerqueira em carta que lhe
escreveu e que, certamente, também não terá sido nada meiga…
Não tenho a absoluta
certeza das fazes seguintes mas julgo que logo de seguida o meu padrinho se
retratou e terá apresentado as suas desculpas pedindo que não cumprisse o que dissera
e deixasse o Victor voltar em Outubro. A madrinha Ricardina entrou também no
processo mas o meu pai não recuou minimamente na decisão. Não era pessoa para
isso. Quando resolvia cortar, cortava e não recuava. Era assim a sua maneira de
ser e, com esta atitude, não recuando, acabou por deixar também o padrinho ofendido, no que se
compreende perfeitamente. Ele, que pedia desculpa pelas palavras menos pensadas, entendia que o afilhado bem podia reconsiderar e deixar voltar tudo ao ponto de partida... Tinha também a sua razão mas... o afilhado Zé era e foi sempre assim. Estava decidido, estava decidido!
Foi então assim, sem um
corte de relações oficiais, mas efectivas, dado que não mais voltaram a
contactar-se mutuamente, que o relacionamento terminou entre eles.
Digo entretanto e em
abono da verdade que jamais o meu pai me impediu de contactar com os padrinhos
e, antes, devo confessar por ser verdade, sempre me pressionou nesse contacto
tanto mais que o padrinho começou a ficar muito doente, numa doença que cinco
anos depois acabaria por o vitimar. Trocávamos alguma correspondência,
nomeadamente por alturas das festas pascais e natalícias e lembro-me mesmo
muito bem da ocasião em que o visitei em casa, com ele já acamado e muito doente, que
fiz isso por sugestão do meu pai…
Lembro-me que aconteceu
em Agosto de 1963 quando se realizou em Lisboa, no Terreiro do Paço, uma grande
manifestação nacional de apoio a Salazar e à sua política ultramarina, como
então se dizia. Foram para Lisboa autocarros de todo o país cheios de gente e
do Chouto também isso aconteceu e o meu pai sugeriu que eu aproveitasse, que
não pagava nada e ia e vinha no mesmo dia e em vez de ir à manifestação ia
visitar o padrinho a casa. Foi o que fiz e foi a última vez que o vi com vida…
No mês seguinte (Setembro) morreria. Estive então toda a noite no velório no
Mosteiro dos Jerónimos e depois no funeral para o cemitério do Lumiar, com a
bandeira do Sporting a cobrir a urna e um grande acompanhamento, nomeadamente com
muita gente do clube.
Assim desapareceu tão prematuramente
um excelente amigo que me deixou muitas saudades que, sinceramente, são saudades que ainda hoje
sinto!...
Fica então aqui narrada
a triste “istória” que esteve na origem do nosso afastamento e, se a conto, para
além de memorizar e registar esse acontecimento, faço-o também para que melhor
se possa comparar como se alteraram os
comportamentos das autoridades deste país desde então para o dia de hoje… Se antes de desconfiava até de duas
inofensivas crianças, colocando-as como ladrões perigosos, detidas na esquadra, hoje, adultos e mesmo já cadastrados, roubam e
matam e… pouco ou nada lhes acontece…
2 comentários:
Bom dia! Concordo perfeitamente com o que diz por último.
Também fiquei a saber de onde veio esse gosto pela bandeira verde...
Bom dia, Dª Lurdes!
Na verdade, nasceu a paixão pelo Sporting exactamente como bem deduziu. Naqueles anos, quer a sede (Rua do Passadiço) quer o Estádio de Alvalade, acabado de inaugurar eram como 2ª casa...
Meu padrinho foi durante muitos anos Secretário Permanente do clube (as direcções mudavam mas ele permanecia sempre como funcionário superior) e o mais curioso é que agora, presentemente, tenho um outro familiar (meu primo) que ocupa no Sporting o cargo equiparado. O Valdemar (Dr. Valdemar Barreto) é Director Geral do grande Sporting.
Muito obrigado pelo seu comentário!
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