quarta-feira, 11 de setembro de 2019

JOSÉ E MARIA, O MENINO, O AGUAMENTO E A CADELA DA "CALISTRA"


José, filho de carpinteiro, aprendia o ofício com o pai quando, subitamente, vê surgirem-lhe complicações pulmonares que o forçam a internamento no hospital da sua Chamusca natal.

Porque a cura demora a chegar, a estadia hospitalar prolonga-se e José aproveita esse período para colher os primeiros e elementares ensinamentos de enfermagem (conhecimentos que viriam a ser-lhe valiosos durante a sua vida futura) e, chegada finalmente a cura, o jovem ouve do médico que o assistiu na maleita o conselho para não prosseguir na profissão de carpinteiro, se queria ter um vida futura duradoura e saudável…

Porque José tinha a 4ª classe de ensino escolar básico - coisa não muito vulgar na época - sabia ler, escrever e fazer contas com desenvoltura, surge a ideia de prosseguir a sua vida laboral como ajudante na mercearia do cunhado Antero, de porta aberta com sucesso no pequeno Chouto, aldeia a várias léguas da sua Chamusca, já na charneca ribatejana, por estrada de muitas curvas, esburacada, poeirenta no Verão e encharcada no Inverno. 

Conversado e acertado o compromisso com a irmã Henriqueta e o cunhado Antero, o nosso jovem deixa então com tristeza a sua sempre amada vila e muda-se para a pequena aldeia, ficando hospedado em casa dos agora seus novos anfitriões.

Depressa se concluiu que José, jovem, inteligente, desempoeirado e desenvolto, tinha jeito e queda para o comércio e por isso o sucesso aconteceu e o jovem comerciante sentia-se bem e feliz com a sua nova vida. Não obstante nunca esquecer a sua amada vila, que visitava sempre que podia, começou a apreciar o ambiente da pequena aldeia, a criar e a alargar amizades e, e deu mesmo inicio a uma abordagem que lhe viria a transformar a vida radicalmente, quando conheceu Maria e tentou uma aproximação...

Maria, jovem e bonita, era a 4ª filha de Gregório e Maria “Arroteadora”, como era conhecida por ter vindo com o marido e as 4 filhas do concelho de Abrantes para arrotearem as terras incultas. Maria, de feições rosadas e bonitas, alegre, ágil e vendendo vida, era analfabeta, labutava com as irmãs e os pais nas terras bravias e no cultivo das searas e hortas da propriedade e com uma beleza que dava nas vistas, era mesmo conhecida nas redondezas por “Maria bonita”.

Todavia, para alguns, ao pé do jovem José, comerciante, inteligente, letrado, astuto e sabedor, Maria não “casava”... Sem saber ler e escrever, inculta, de mãos calejadas pelos cabos das enxadas, das foices ou das forquilhas; de pele tostada pelo árduo sol da charneca, sem cremes ou pinturas das senhoras da vila, parecia a alguns nitidamente um enlace improvável de se concretizar. Parecia mas… não foi!

José aguentou não só as primeiras recusas da “Maria bonita” como também as criticas de familiares e amigos - como poderia ser um jovem e inteligente comerciante, casar com uma rapariga do campo e ainda para mais analfabeta? - mas o jovem insistiu, insistiu e o namoro primeiro e o casamento depois, aconteceram mesmo.

Montaram casa na mesma rua da residência da irmã e da mercearia e casaram em 1943 na Igreja Matriz da amada Chamusca e, algum tempo decorrido José, inteligente e ambicioso, comercialmente “ganha novas asas”: pressente um negócio a nascer, deixa a mercearia do cunhado e estabelece-se por conta própria como vendedor de máquinas de costura, peça então “obrigatória” no enxoval com que os pais gostavam de presentear as filhas casadoiras.

O negócio corria bem, o relacionamento entre José e Maria era excelente e, por via disso eram felizes e, naturalmente, meses passados do enlace, a jovem  esposa engravida. Engravida e, dentro do período normal, dá à luz o seu 1º e bonito rebento, um filho varão. Feliz, José pensa de imediato dar-lhe o nome de Leandro mas Ricardina, vinda da grande Lisboa convidada para madrinha do pequeno e que já havia sido sua madrinha no casamento, opõe-se determinando:

- Leandro nunca, Zé! Victor! Vai chamar-se Victor, que é muito mais bonito! - e o afilhado, embora contrariado, aceita. E o menino é registado como Victor.

Inicia-se então a sua criação normal, bonita e feliz durante um ano e, com o menino crescendo, já com esse aninho de vida, algo surge de triste e preocupante: o pequeno Victor deixa de comer com o apetite habitual; pede e quer tudo para ingerir mas rejeita tudo; começa a surgir pálido e a definhar; os cabelinhos começam a ficar de pé; geme e chora a toda a hora... Maria, angustiada, chora, acha mesmo que o seu adorado filhinho vai morrer...

Profundamente preocupados, Maria, José e seus familiares interrogam-se e José leva o menino ao médico seu amigo na Chamusca que o observa e receita alguns medicamentos que logo são dados ao pequenino na esperança que surja a desejada cura...

Mas a situação mantém-se dia após dia, com o menino sempre na mesma ou mesmo pior. Sem comer, pálido, cabelos em pé, enfezado e os preocupados pais cada vez mais angustiados...

É então que Maria ouve da mãe, das irmãs e das vizinhas: 

- O menino tem “augamento”! O menino está “augado”! Só melhora e fica bom com a “mesinha” para o “augamento”. Faz-lhe a “mesinha”, Maria!

Maria chega a casa e fala a José do conselho da “mesinha” e ouve do jovem marido um rotundo “não”. 

- Mesinhas? Mesinhas??? Gente ignorante! 

José, de outra cultura, nascido e criado na vila, tinha formação bem diferente de Maria, analfabeta, aldeã, mulher do campo... Que ninguém trocasse a ciência e os médicos pelas “mesinhas”e pelas “benzedoras”! Ninguém! (De seu lema e certeza de toda a vida, só uma vez, muitos anos após haveria de abdicar desta convicção quando, face a gravíssima doença da sua Maria lhe adivinhava a morte em virtude dos milhentos médicos e especialistas consultados não lhe atinarem com a doença e consequente remédio e tolerou que alguém levasse uma peça de roupa da esposa para que a “benzedora” lhe indicasse o tratamento).

Mas Maria, não obstante não querer nem poder contrariar José, não desistiu. O menino estava magrinho, definhado, ia morrer e isso desesperava-a. Conversa com a cunhada “mana” Henriqueta, senhora bondosa, extremamente educada e sua preferida confidente. E a “mana” - carinhoso tratamento que sempre usaram entre si - ainda que extremamente religiosa e de cultura igual à do irmão, ouve a confidência da cunhada e acede em ajudá-la na realização da “mesinha” porque, para além de sentir a dor da “mana”, também ela tinha um carinho enlevado e muito especial pelo pequenino sobrinho. Uma condição acertaram mutuamente: José jamais poderia saber da sua “mesinha”!

Dizia a crença que a mãe do aguado bebé deveria pedir as umas quantas vizinhas umas porções de ingredientes para serem cozinhadas e depois o pequeno ingerir. Se a criança comesse toda a papa fabricada excelente mas, se todavia não comesse tudo, nenhum ser vivo deveria ingerir o resto porque… morria.

Maria e Henriqueta fazem a papa às escondidas e dão-na ao pequeno Victor que a ingere colher a colher, até mais não querer, perante o ar embevecido e esperançado das mulheres e deixa um pequeno resto na malga, a que havia que dar o destino final…

Maria, preocupada e curiosa, pergunta a Henriqueta: 

- E agora, mana? Que fazemos ao resto que o menino não quis?

- Olhe, damos à cadela da “Calistra” que todos os dias não me desampara a porta!

E dão o resto da papa à cadela da vizinha Helena, de alcunha “Calistra”.

Maria leva o menino para casa e passadas algumas horas começa a notar no menino  melhorias  de ânimo e aspecto. Aguarda mais um dia e perante uma noite bem descansada da criança, avança lesta e sorridente para casa de Henriqueta, anunciando-lhe feliz:

- Mana, o menino está melhor! Passou bem a noite e ao acordar pediu papa que logo lhe dei, nem lhe digo como, de tão feliz!

Henriqueta, como o irmão sempre descrente e discordante de “mesinhas”, abriu a boca de espanto e, feliz, abraçou-se à cunhada!

- Que bom, mana! Que alegria! Mas tenho de lhe  dizer uma coisa…

- O quê? - pergunta a ansiosa Maria, imaginando algo de menos bom que viesse toldar aquela hora feliz.

- A cadela da “Calistra” morreu! A Ti Helena, pesarosa, veio há pouco aqui dizer-me “Dª Henriqueta, estou muito triste, a minha cadela morreu!”

Maria ia caindo para o lado de espanto mas logo se refez quando Henriqueta lhe lembrou:

- Mana, mas o segredo é só nosso, está bem? Que nem a Ti Helena nem ninguém saiba que demos à cadela a sobra da “mesinha”!

Maria acedeu de bom grado e a “mesinha” foi silenciada durante vários anos para tudo, para todos e também para o marido e, só muito mais tarde no tempo, quando em casa se falava na cura do Victor, entretanto já bem crescido, José ficou a conhecer a “travessura” das mulheres e, aí, contrapôs de imediato:

- Balelas! Crendices! Ignorâncias! O menino curou-se com os remédios do dr. Cumbre, que logo avisou que a cura seria demorada.

Maria e Henriqueta sorriam.

Remédio da farmácia na cura? “Mesinha”? A cada um sua verdade...

Como verdade foi o Victor curar-se!

E, a morte da pobre cadela? De que morreu a cadela da Ti “Calistra”?… 

A cada um sua verdade...


NOTA FINAL – Junto ao texto 4 fotos: Uma do casamento de José e Maria à saída da cerimónia na Igreja Matriz da Chamusca; outra do 2º dia do casamento, com alguns convidados, a madrinha Ricardina sentada na frente, o pai da noiva, as irmãs e alguns namorados destas; uma 3ª de José, em 1950, exibindo as máquinas de costura de que era vendedor; e uma última foto do pequeno Victor, provavelmente com 1 ano de vida, entre as tias maternas Domingas e Luísa.

Sem comentários: