Foi uma situação terrível vivida exactamente neste dia 17 de Outubro mas no já distante ano de 2000 e foi de tal forma sentida e angustiante que, para além de não mais a ter esquecido, tem mesmo detalhes daquelas duas horas desse dia dos quais me recordo ainda hoje em memória tão fresca como se se tivessem ontem passado.
Passei essas más duas horas desse dia
na distante cidade de Assuão, a 1.000 kms do Cairo, durante uma belíssima e
inesquecível viagem que, integrado num excelente grupo de amigos, realizamos
durante 8 dias por terras egípcias.
Viagem maravilhosa porque estava muito
bem programada, os companheiros eram magníficos, o passeio era bonito e bem
organizado e também porque tivemos a sorte de ser acompanhados do primeiro ao
último dia, em todos os instantes, por um guia turístico de primeiríssima
qualidade! De seu nome Mohamed Sherif, era egípcio, naturalmente, mas tinha
feito uma estadia de 3 anos no Rio de Janeiro e, assim, falava português
correctamente e tinha até apanhado o
belo jeito carioca da brincadeira e da conversa bem humorada. Para além disso sabia muito bem muitas das
nossas canções mais populares – “Ó malhão, malhão!”, “A saia da Carolina!”,
etc. – e cantava o Hino Nacional de Portugal melhor que muitos portugueses!
Sherif foi durante toda a viagem uma verdadeira preciosidade que nos calhou em
sorte e contribuiu sobremaneira para valorizar imenso a viagem ao Egipto. (Num
aparte conto que falei muito com ele sobre o país, hábitos, vida das pessoas e
o seu regime político e o Sherif foi sempre muito solicito em dar-me explicações
mas, só numa situação o rapaz nunca se abriu… Foi quando lhe perguntei – e mais
que uma vez! – quantas mulheres tinha… eheh! Aí, ele nunca quis divulgar. E fez
bem, eu não tinha que ver com isso...)
Mas, volto ao episódio que hoje aqui
quero recordar. Nesse inesquecível dia 17 de Outubro de 2000 perdi a carteira
com cartões bancários e toda a documentação de identidade pessoal e pode
imaginar-se o drama imenso sentido naquelas distantes paragens, numa terra onde
o Sherif varias vezes nos avisara para termos cuidado com os egípcios. “Eles
não são bons!”, dizia-nos e onde até para irmos aos sanitários num qualquer
isolado e inóspito lugar, encontrávamos um soldado de metralhadora ao ombro… Nunca nos fizeram mal é verdade e tudo correu
pelo melhor nesse aspecto mas a segurança era muita e via-se que a pobreza da
população local era uma triste realidade.
Eu era dos maiores pobretanas que
integravam o meu grupo de amigos. Todos – à excepção de mais um outro… - tinham
cartões de crédito e levantavam dinheiro nos bancos com relativa facilidade
menos eu… Informado aqui em Portugal – mal informado… - que ali funcionavam os
Multibancos, só tinha levado cartões desses que, na altura, não tinham ainda os
caracteres em relevo e os homenzinhos dos bancos passavam o dedo pelas letras
e… nada. Aquilo não prestava para eles. Pus o Sherif ao corrente da situação e
ficou decidido que em Assuão iriamos a um banco resolver o problema e sacar
dinheiro porque eu comecei a necessitar de libras egípcias e tive de recorrer a
uns solícitos companheiros de viagem a quem já devia umas massas…
Nesse dia, depois da viagem da manhã
em que visitamos o Templo de Philae, na Ilha Agilka e uma fábrica de perfumes,
o autocarro seguiu com o grupo para o almoço no barco e ele saiu do autocarro comigo
e com o outro amigo companheiro pobrezinho como eu sem cartão de crédito que
também precisava de levantar dinheiro e, o Sherif, como tinha as pernas muito
grandes entrou no banco muito primeiro que nós e quando chegamos já ele tinha
abordado o funcionário do balcão. E conto este detalhe porque esta é a primeira
situação que me lembro exactamente como se tivesse ocorrido ontem… Está
fresquinha aqui na caixinha dos pirolitos.
Antes e enquanto caminhava para a
porta do banco eu dei conta da falta da carteira no bolso dos calções e fiquei
em sobressalto! Entrei e o Sherif pede-me:
- O cartão?
- Não tenho! – respondo-lhe
- Como não tem? – pergunta, admirado
- Perdi, Sherif!
- Como perdeu? – ele pasmado com a
minha revelação…
- Não sei. Perdi!...
E é então que ele me lança a terrível
interrogação:
- E o passaporte???
Ia-me dando uma síncope e nem sei como
não caí para o lado… Enchi-me de suores frios, a boca secou-se-me instantaneamente
e foi terrível! Aquela pergunta “E o passaporte?”, foi de mais! Eu não me tinha
lembrado que também levara o passaporte, antes sempre guardado no barco/hotel
e, quando o guia me pergunta por ele, foi o máximo da aflição. O máximo!
Ele fez logo uns contactos pelo
telefone, chamou um táxi e partimos de imediato para a fábrica de perfumes na
busca da carteira. Lembro-me que, ali, na rua, a minha sobrinha Susana tinha-me
ligado de Portugal. Na ocasião eu estava na rua, no passeio e fui ao bolso para
pegar o telemóvel e atender a chamada. Podia ser que nesse gesto a carteira
viesse atrás e caísse na rua e alguém a tivesse apanhado… Mas ali também não
estava…
Tomamos de novo o táxi e partimos para
a ilha. Tínhamos de apanhar um barco, digamos que barco/táxi num pequeno cais e
é aí que se dá mais uma cena que tenho aqui bem viva na memória… Já estávamos os dois em pé dentro do pequeno
barco quando, da guarita/portaria, ali a 8,10 metros, um soldado armado, como
todos, afinal, chama o Sherif. Ele deixa-me e vai ao seu encontro e ficam a
falar à porta. Eu, de pé, no barco, observo interessado e intrigado toda a cena.
A boca danada de seca, seca até mais não, numa angústia imensa que não desejo a
ninguém… A dois/três dias da partida para casa, via já o grupo a deixar-me, se
não ali em Assuão, pelo menos no Cairo… E eu sem falar a língua deles, sem
apreciar a sua comida de beringelas, pimentos, tomates assados, etc… E a roupa lavada que começaria a faltar? E o
choque de ver todos a partirem e eu a ficar? Uhf! Que susto!...
Estava então naqueles instantes de pé
dentro do barquito a ver o Sherif a falar, primeiro com um qualquer sujeito e,
depois, ao telefone que lhe passaram e, de repente, sem conseguir traduzir uma
só palavra da língua árabe que falavam eu, pelas expressões, pelos gestos, sei
lá porquê, como que comecei a entender tudo o que se estava a passar… Eu “via”,
segundo a segundo, gesto a gesto, que algo de bom estava para acontecer… O
Sherif larga o telefone, dirige-se em passadas largas para mim e, de sorriso
aberto, diz-me:
- Venha! Problema resolvido! A
carteira apareceu!
- Onde estava, Sherif? – pergunto,
entre sorrisos e quase em choro de alegria.
- O motorista, depois de ter feito uma
vistoria ao autocarro e nada ter encontrado, resolveu voltar lá e achou-a caída
no corredor, entre os bancos. Já a entregaram no barco.
Eu nem queria acreditar. Saiu-me de
imediato um peso inacreditável de cima dos ombros e a viagem subitamente voltou
a ser para mim uma coisa linda, maravilhosa, inesquecível! Apetecia-me pular,
gritar, berrar aos quatro ventos! Mas contive-me e abracei-me ao amigo Sherif,
a minha verdadeira boia de salvação naqueles terríveis momentos passados.
Partimos de imediato, de novo no táxi,
rumo ao barco/hotel atracado em Assuão para pegar os documentos e avançarmos
para o banco, antes que fechasse…
Chegados ao barco tive a inesquecível
surpresa de encontrar à minha espera o amigo Geraldino Rodrigues, meu
companheiro de viagem e que ali me confessava que não tinha conseguido almoçar
sem que eu chegasse com o problema resolvido, numa manifestação de
solidariedade e amizade que me tocou profundamente.
Avançamos a correr para o banco que
estava a fechar. Lembro-me que tive de telefonar para Vila Franca de Xira, onde
o sr. Marecos, do Montepio Geral me libertou a verba na conta e eu recebi em
libras em Assuão. Quando saímos e porque o banco já tinha fechado as portas,
fizemo-lo pelas traseiras e aí ficou-me mais uma imagem para todo o
sempre: Saímos para uma rua
incrivelmente porca e mesmo nojenta! Terra batida, esgotos a céu aberto e lixo
pelo chão e crianças, várias crianças meias nuas a brincar naquela miséria…
Virávamos a esquina do edifício e retornávamos à avenida principal que ladeava
toda a margem do Nilo, era outro mundo… Rua limpa, ajardinada, passeios e piso
impecável. Coisa para turista ver!... Era o Egipto daquela data… E, certamente
agora, por via das convulsões verificadas e do turismo que fugiu, a coisa
estará muito pior.
Eis-me então finalmente com o
dinheirinho no bolso, de novo a caminho do barco para, já por volta das 3, 4 da
tarde, ver se “almoçava” com o amigo Geraldino que me esperava. Fomos ao
restaurante e ali nos arranjaram qualquer coisa, talvez uma carne, cozinhada de
qualquer forma e que, francamente não me recordo bem… O que me recordo
muitíssimo bem é que, como o estômago aconchegado, avançamos para o bar para
tomar café e eu sugeri ao meu amigo:
- Geraldino, vamos tomar um whisky
duplo? Tem de ser para celebrar esta hora que nunca mais esquecerei!
O Geraldino assentiu e esta é outra
visão que tenho ainda bem viva na minha memória:
Os dois balões de whisky encima do
pequeno balção do bar do barco e nós depois, sentados nos cadeirões em frente,
a deliciarmo-nos com o seu sabor! Que maravilha! Que sensação de alívio! Que
prazer naquele instante!
Passou-se assim este terrível episódio
da minha viagem pelo Egipto e pelo Nilo mas a minha história desse
acontecimento ainda não acaba aqui…
Faltava retribuir o excepcional gesto
de dedicação e amizade do guia Sherif…
Ele, naquelas duas horas, foi
verdadeiramente fantástico e porque era a minha única esperança de salvação,
agarrei-me a ele como que a uma boia de salvação naquele mar tumultuoso que me
atormentava. Eu não conhecia um metro do terreno onde estava; não falava uma
palavra da língua daquela gente; ele tinha-nos alertado para termos cuidado com
as pessoas que nos rodeavam… Era um tormento inenarrável e Sherif foi exemplar
e único! Nunca esquecerei o seu
profissionalismo e dedicação!
Sherif teve o cuidado de, no último
dia, ir ao hotel no Cairo para se despedir do grupo e aí chamei-o a um canto do
hall onde estávamos e, encima de uma pequena mesinha, despejei o porta notas e
moedas na sua totalidade e disse-lhe:
- Sherif, tome! É para si! Não dá para pagar toda a sua
imensa atenção para comigo naqueles terríveis momentos mas, de alguma forma
quero assim retribuir a sua imensa dedicação e amizade que tanto apreciei!
Não era muito dinheiro e na nossa
moeda de então eram onze mil escudos, o equivalente a uns escassos 55 euros na
moeda de hoje mas lembro-me perfeitamente de ver a sua cara de enorme espanto
perante todo aquele dinheiro que, segundo sabíamos, naquela data correspondia a
alguns meses do seu vencimento mensal. Eles ganhavam mal… Reagiu e recusou numa
primeira resposta mas eu fiz-lhe ver que
o oferecia de muita boa vontade e também porque as libras egípcias não me eram
mais necessárias. Ele entendeu e aceitou então, francamente agradecido! E eu
fiquei de bem comigo mesmo.
Findo esta já longa história dizendo
que deixo aí uma foto em que vemos, junto ao Templo de Philae, na Ilha Agilka, o
grande Sherif e o amigo Geraldino no celebre dia 17/10/2000 e uma outra, de
14/10, onde apareço com o nosso amigo guia no Templo da Karnak, em Luxor e ainda uma outra em que, mascarados a rigor, no dia 16/10, realizamos um fantástico baile e uma soberba festa no Barco/Hotel. Bons
tempos. Bons tempos mas com esta recordação de angústia jamais sentida e nunca esquecida…
Sem comentários:
Enviar um comentário