Homem multifacetado na sua actividade laboral e comercial, José Azevedo criou e desenvolveu comércios vários e exerceu muitas e diversificadas profissões, desde vendedor de máquinas de costura, rádios transístores e electrodomésticos, matança e talho de carne de porco, receptador e negociante de cereais e até criador de largos bandos de frangos em aviário, galinhas poedeiras, coelhos, bovinos, cabras, borregos e até chinchilas, tudo Zé Azevedo exerceu com o propósito único e natural de melhor viver e criar mais bem estar para os seus.
Homem de muito trabalho e bastante saber, por incrível que pareça ainda tinha tempo de recrear-se e divertir-se com o seu “hobby” preferido: os pássaros. Capturar ou comprar e fazer reproduzir em cativeiro as mais diversas espécies, mais ou menos autóctones, mais ou menos exóticas, era a sua grande distração, era o seu grande prazer.
Com a evolução das mentalidades, com a edificação de uma nova cultura em que possuir aves e animais em cativeiro é condenável e mesmo proibido, viver hoje com esse gosto e prazer criaria a José Azevedo sérias contrariedades com as autoridades e até mesmo, naturalmente, com o seu semelhante.
Então, construiu mesmo no quintal da sua residência, primeiro em armação de madeira e rede fina e, em fase posterior, com sólida estrutura de ferro, amplas gaiolas de vários metros quadrados de área onde a passarada vivia e procriava, nalguns casos em bandos, como acontecia com os periquitos.
Tinha as mais diversificadas variedades de pássaros que iam dos pequeninos bicos de lacre, até aos robustos faisões de várias raças, passando por pintassilgos, canários, periquitos, verdelhões, cardeais, melros, perdizes, patos, rolas, pombos diversos e até gralhas que, pacientemente ensinava a palrar e, muitas, muitas outras variedades de aves. Mais à frente no tempo e numa nova propriedade de terreno virgem que adquiriu noutro local da aldeia, nela voltou a construir casas, pavilhões e gaiolas com mais pássaros e, vedada que foi a propriedade, ali chegou a ter pavões, patos diversos e mesmo coelhos à solta que procriavam e viviam em buracos que escavavam no solo. Ficam aí algumas imagens desse diversificado conjunto de aves, junto das quais surge o então seu pequeno neto Nuno, igualmente grande apaixonado de aves e outros bichos.
Mas, a sua grande paixão era mesmo as aves e, para além das que adquiria com regularidade em casas especializadas e noutros criadores, ia mesmo à sua caça com armadilhas de rede que ele próprio criava. Nessas capturas, visco nunca usou, exactamente porque temia esquecer-se dos locais onde o aplicava e assim deixar alguma ave morrer de fome e sede e, quanto às armadilhas, usava-as em pequenas poças de água da chuva, nas estradas de terra junto à aldeia de sua residência. A “tampa” da estrutura da armadilha era elevada do solo no local da poça e suportada por um pequeno segmento de ripa de madeira, ligado por um cordel até ao seu esconderijo onde se mantinha atento ao movimento dos pássaros. Detectadas que fossem a aves a beber ou a banhar-se, José Azevedo puxava pelo cordel o braço/suporte que deixava cair a parte superior da armadilha, assim aprisionando as aves. Hoje, esta captura seria totalmente inviável mas, na altura, tudo e todos achavam bonito ter um passarinho na gaiola, fixada numa parede ou dependurada num qualquer suporte. E, quantos melros, retirados pequeninos dos ninhos, não criou José Azevedo alimentando-os à colherada pelo bico abaixo, com arroz, massa, batata, da sua comida caseira? Por incrível que pareça muitos, imensos! E tudo na época legal, aceite, aprovado e bonito!… Na verdade, o que era aceite e compreendido ontem ao progenitor do autor destas linhas, hoje acarretar-lhe-ia grandes complicações e dissabores e seria mesmo impraticável, porque proibido.
Mas as aves eram tratadas com o maior carinho e desvelo e o nosso amigo tinha mesmo literatura que o ajudava a mantê-las e reproduzirem-se, literatura que veio mesmo até aos nossos dias e de entre a qual se destaca o “Manual Prático do Passarinheiro”, obra que lhe foi oferecida em 1956 pelo dr. Benjamim Amaral Neto, figura destacada na Chamusca de outrora, de cujo livro aí se deixam duas imagens.
Para além disso José Azevedo trocava correspondência e conhecimentos com outros criadores de aves, de onde sobressaia por exemplo muitas trocas de ideias e animais com pelo menos dois criadores de faisões do nosso país. Neste caso dos faisões tinha mesmo, de propósito, reservadas para chocarem os ovos das fêmeas, pequenas garnisés, sendo que realmente muitos faisões fez nascer e criou e só uma espécie não conseguiu que procriasse: o prateado. Nunca José Azevedo conseguiu criar no aviário faisões prateados. Nem isso, nem canários, acontecendo que, neste caso dessas avesinhas amarelas, achava que a sua multiplicação era muito melindrosa.
Tanta bicharada, para além do muito e atento trabalho que exigia, obrigava igualmente ao dispêndio de consideráveis verbas mas, que recorde ao escriba destas linhas, jamais lhe foram ouvidos lamentos, queixumes ou a mais pequena vontade de desistência de tão bonito aviário.
Um dos alimentos que “descobriu” para aliviar tamanha despesa com a alimentação das aves, sobretudo dos “bicos” mais miúdos, era a milhã, erva daninha que crescia espontânea em grande quantidade nos cômoros dos canteiros dos arrozais que na época abundavam na zona. As sementes da erva assemelhavam-se a alpista e as pequenas aves, com destaque para os periquitos, comiam-nas como tal.
Mas, na verdade, José Azevedo não se queixava da despesa que tinha com o aviário, talvez pelo muito prazer que lhe dava esse seu “hobby”, prazer que igualmente por vezes transformava em divertimento, como o daquela vez que se lembrou de pegar numa bisnaga de guache vermelho do estojo de desenho escolar deste escriba e, dissolvendo uma porção na água de um recipiente, resolveu banhar nela um periquito branco. A pobre avezinha ficou cor-de-rosa e, como resultado disso e porque espalhou-se a notícia de que “o Zé Azevedo tem um periquito cor-de-rosa”, foi divertido observar a curiosidade de muitos visitantes que queriam ver um periquito de cor… rosa. Mas o nosso passarinheiro não gostava de aldrabar as pessoas, não gostava não e, antes que se fossem, confessava a sua brincadeira ao visitante. E o periquito rosa, foi tomando banho dia-a-dia em água límpida e, pouco a pouco, foi ficando… branco, a verdadeira cor da sua plumagem.
Mas não ficaria por apenas essas cenas mais ou menos hilariantes com situações resultantes do “hobby” e aqui se recorda aquela em que o nosso passarinheiro viu surgir-lhe à porta dois militares da GNR que, depois de o saudarem interrogando:
- Como está sr. Azevedo? - lhe solicitam:
- Sabemos que tem um aviário com muitas aves, será que nos deixa visitá-lo?
O sr. Azevedo, que de ingénuo pouco tinha, achou logo que aquele pedido para apreciar o aviário trazia... “água no bico” e respondeu-lhes de pronto:
- Com certeza! É um prazer! Façam favor de entrar!…
Atravessaram a residência e chegaram ao quintal,.quedando-se então por alguns minutos vendo as aves e, findo uns instantes, observa-lhe o cabo da patrulha:
- Vejo que o sr. tem aqui perdizes...
A que Zé Azevedo de imediato respondeu:
- Pois tenho! Um casal e ando a ver se consigo que se reproduzam…
- Mas sabe que é proibido ter perdizes em cativeiro?
- Sei, sei! - admitiu de imediato o nosso passarinheiro..
- Pois, sendo assim, lamento mas terei de lhe levantar um Auto que lhe acarretará algumas consequências.
O atento Azevedo já esperava por aquela informação e respondeu-lhe de pronto:
- Se fosse a si não passava já o Auto porque, se esperar uns instantes, pode ser que eu lhe evite esse trabalho…
E, dito isto, entrou em casa, foi ao escritório e trouxe aos GNRs a Autorização, de 10/8/1955, da Comissão Venatória Regional do Sul, que aqui se junta.
Os homens viram a Autorização e pediram desculpa pela sua desconfiança, confessando:
- Sr. Azevedo, cumprimos ordens!
- Eu sei que cumprem ordens e fazem bem mas agora peço que digam ao vosso Comandante que mude de informador porque este é fraco.
- Na verdade, foi uma denúncia mas, como é que sabe isso?
José Azevedo não desarmou e...
- Sei que foi uma denúncia e acho que sei quem a fez mas… errou. Teve azar!
E, quando os GNRs viraram costas, diz a crónica, José Azevedo rebolou-se de gozo...
Na verdade José Azevedo era um homem profundamente legalista e, sabendo que tinha gente que dele pouco gostava, procurava nunca “pôr o pé em ramo verde”…
Mas a história das perdizes em cativeiro e da autorização para isso, ainda tem mais um curioso e interessante episódio...
A autorização restringia a apenas um casal de perdizes o seu cativeiro e o nosso passarinheiro pretendia que se reproduzissem, tendo desenvolvido para isso muito trabalho e dedicação durante alguns anos até que, finalmente, conseguiu os seus intentos e o casalinho teve uma “linda ninhada de perdigotos”, nas suas palavras, na carta que abaixo se refere.
Como Zé Azevedo não tinha licença para os possuir, tratou de voltar a escrever à Comissão Venatória, por carta de 5/8/1963 bem redigida, argumentando que lhe haviam dado muita despesa, trabalho e dedicação, sendo alimentados “com farinha própria e ovos cosidos” pelo que gostaria de os guardar em seu poder e, porque “não os quero para eu comer” por “não sendo capaz de os matar” e ainda que, libertando as pequenas crias estas “não saberão procurar comida e em breve serão devoradas pelos milhafres e outras aves de rapina que abundam nesta região”, o nosso amigo pedia autorização para os manter no aviário.
A Venatória, entendeu a situação, compreendeu a estima do passarinheiro pelas aves e prontamente lhe enviou nova Autorização, esta já especificando que era para “guarda de perdizes que se destinam a reprodução para repovoamento”.
José Azevedo ficou satisfeitíssimo com a nova e alargada autorização e teve mesmo o cuidado de escrever nova carta à Comissão Venatória oferecendo-lhes – pasme-se!… - um casal de perdizes. Isso mesmo, por incrível que pareça: um casal de perdizes oferecidos à Venatória… Os homens ficaram encantados com a gentileza e, educadamente, responderam-lhe na volta do correio “cumpre-nos agradecer muito penhoradamente a oferta” mas, uma vez que “estão devidamente instaladas não é conveniente por motivos de ordem tecnica mudar-lhe agora as condições de “habitat”.
Assim mesmo, gratos e talvez surpreendidos com a oferta do cavalheiro Azevedo.
E, para encerrar esta já extensa crónica, resta acrescentar que o “hobby” preferido do nosso amigo, terminou de forma dramática…
Com 62 anos José Azevedo partiu desta vida, prematura, repentina e tristemente para todos os seus entes. A sua dilecta companheira de sempre, a doce e sofrida Maria do Rosário, fez questão de manter todas as aves do querido esposo e isso aconteceu durante muitos meses até que, bruscamente, numa escura e dramática noite, o irado cão do casal de vizinhos da casa contigua à sua e que, com Maria partilhavam as traseiras das residências na nova propriedade criada por José Azevedo, forçou e quebrou a corrente que o prendia, correndo rápido para as gaiolas que arrombou com grande violência, tendo liquidado e devorado tudo o que mexia. Tudo, tudo! Não ficou um bico vivo!
Maria do Rosário não se apercebeu de tamanho drama durante a noite e, de manhã, quando viu horrorizada o terrível espectáculo de faisões, pombos, galinhas, patos e demais aves, tudo dizimado, ficou em choque e o caso não era para menos.
Num pequeno e dramático instante findava assim todo o bonito “hobby” do seu querido Zé e ela nem queria acreditar…
Chorou. Chorou muito a sofrida Maria, tendo de imediato recebido o carinho e o alento de família chegada e mesmo afastada e de muitos amigos solidários com a sua grande dor e, com o tempo, que tudo ameniza nos espíritos, foi-se conformando com a triste realidade.
Marcá-la-ia entretanto para todo o sempre, além do grande desgosto pelo ocorrido, a atitude dos vizinhos, donos do cão: deles, nem uma palavra de pedido de desculpa...
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