terça-feira, 23 de outubro de 2018

A MINHA PESQUINHA, JOÃO BASUGA E JOSÉ SARAMAGO


ONDE SE FALA DE UMA OPORTUNIDADE PERDIDA...


Na época, nos anos das décadas 80 e 90 do século passado, eu pescava em pequenas represas de terras alentejanas com mais dois companheiros e tínhamos por hábito, depois de “animar” o estômago por volta do meio dia debaixo de uma azinheira, pinheiro ou sobreiro com a bucha que levávamos de casa, ou quando era mesmo confeccionada no local – e estou a lembrar-me de uma vez, ali para as bandas de Aviz, perto do Maranhão, de um bom bocado de alto toucinho assado nas brasas que o “velho Carvalho”, deixando a pesca um pouco mais cedo, já estava preparando debaixo de um frondosa azinheira quando ali cheguei e me deliciei com um suculento pedaço do dito toucinho assado, entalado numa boa fatia de fresco e alentejano pão que havíamos comprado à saída do forno numa padaria em Mora mal o dia nascia – tínhamos então por hábito, após a refeição, deslocarmo-nos à localidade mais perto para tomarmos café e ficar por ali mais um pouco aproveitando o fresco da casa e refrescando-nos com umas cervejinhas, protegendo-nos desta forma do imenso calor alentejano, tanto mais que os achigãs, com o Sol a pique, costumavam ficar inactivos.

Faziamos habitualmente sempre assim e isso acontecia tanto em Aviz, como em Pavia, Vimieiro ou Lavre.

E é exactamente sobre a nossa ida a esta última povoação que pretendo falar na minha crónica de hoje.

Frequentavamos habitualmente o “Café da Mariana” na rua principal da localidade, que liga a Estrada Nacional ao largo do Coreto e onde fica a Cooperativa, o posto da GNR, os correios e até a farmácia.

Era uma casa de duas salas de ambiente acolhedor e frequência simpática, encontrando ali quase sempre, invariavelmente, as mesma caras. Homens do campo, com alguma idade e por isso já reformados e livres da anterior árdua luta do trabalho rural.


Foi no “Café da Mariana” que conheci o homem de luto carregado, cuja imagem deixo aí acompanhado de uma sua filha, em foto que há dias teve a gentileza de me facultar 

De figura bem encorpada, vestindo luto da cabeça aos pés, de cara séria e voz pausada e ponderada com fisionomia e expressão algo triste que fazia adivinhar que algo de muito grave lhe havia ocorrido na vida… E, de facto, assim acontecera… Trágica e bruscamente, de acidente de viação, morrera-lhe um filho de pouco mais de 20 anos, um filho porque ansiara na idade fértil desde a 1ª à 6ª gravidez da esposa de que resultaram sempre meninas e que só surgiu ao 7º parto, podendo avaliar-se a alegria sentida na feliz ocasião. O sr. João – assim me disse que se chamava e assim era tratado – aspirava ter um filho e ele aconteceria à 7ª tentativa! Finalmente!…

Pode pois imaginar-se a dor sentida com a sua brusca partida… Pode pois sentir-se a sua imensa dor… Dor que o fez carregar o luto intenso desde essa triste hora até ao fim dos seus dias. Sentia-se na voz, na fisionomia e na postura do sr. João a dor que carregava. E é curioso como, de entre os diversos frequentadores do café, tendo praticamente sempre as mesmas caras por companhia, passados todos estes anos só me lembrar da do sr. João. Só a sua figura, a sua fisionomia, a sua voz, as sua postura, me ficou na memória.

As conversas que tivemos nas diversas vezes que nos encontramos eram ligeiras, despretensiosas e versavam situações do dia a dia das nossas vidas. O sr. João, para além da sua situação de reformado, falou-me do seu jeito e prazer em trabalhar a cortiça em artesanato e adquiri-lhe mesmo um conjunto de cochos, bem como um chapéu muito bonito e bem feito, peças que ainda hoje guardo numa parede da adega e de que aqui deixo foto e que, ao vê-los, sempre me faz recuar até aquela época, às pescarias, os bons momentos vividos e às agradáveis conversas tidas com o sr. João, no Lavre.

E, Lavre foi a localidade onde José Saramago se instalou para ali conhecer a realidade político-económico-social do Alentejo, dos latifúndios e dos trabalhadores rurais antes do 25 de Abril, com o seu sofrimento, as suas lutas e afinal as suas vidas para, a partir desses conhecimentos e dessa experiência e vivência, escrever Levantado do Chão, romance fundamental, trave principal na sua obra, no dizer dos entendidos, que lhe valeu o Nobel de Literatura.

Mas volto à minha pesquinha dizendo que, a partir de determinada data se alterou porque deixei de pescar com os anteriores companheiros, tanto mais que um, o velho amigo Carvalho, haveria de ver chegar a sua hora de partir deste mundo e passei a fazê-la sozinho numa herdade igualmente junto a Lavre, cujo proprietário fez o favor de ali me deixar praticar o meu desporto favorito.

E é de uma conversa com o Encarregado da propriedade, com quem falava amiudadas vezes, que dou início ao final desta minha crónica, dando conta do enorme espanto sentido com uma revelação vinda desse meu interlocutor.

Eu tinha acompanhado nos jornais e na net uma polémica em que entravam pessoas de Lavre, resultante da exclusão das edições seguintes de uma dedicatória a várias pessoas da localidade incluida por Saramago na 1ª edição de Levantado do Chão em que, segundo o escritor dizia expressamente “sem eles não teria sido escrito este livro”, confissão que era antecedida da referência a diversos seus amigos da povoação, onde escrevia: “À Isabel, sempre (alusão a Isabel da Nóbrega, sua 1ª esposa). A João Domingos Serra e João Basuga, e também a Mariana Basuga, Elvira Basuga, Herculano António Redondo, António Joaquim Cabecinha,” etc, etc e, terminava então: “sem eles não teria sido escrito este livro.”. Era desta polémica nascida da inclusão da dedicatória na 1ª edição do livro e na sua exclusão nas edições seguintes que conversava com Pedro Rita, o Encarregado da Herdade quando ele, subitamente e para meu enorme espanto, me diz: 

- Pois, e esse sr. João, com quem o amigo falava no “Café da Mariana” e que entretanto já faleceu, era exactamente o João Basuga, da dedicatória do livro.

Eu abri a boca de espanto, assim como de quem não está a ouvir bem e, incrédulo, perguntei:

- Hem? O quê? O sr. João, era o João Basuga?

- Sim! - responde-me o amigo Pedro e acrescenta, para ainda meu maior espanto:

- Foi ele que, com a sua família, deram hospedagem a José Saramago enquanto ele por aqui esteve.

Eu não queria acreditar. Não queria, não... Tinha estado e conversado diversas vezes com o homem que hospedou durante meses Saramago e, falando então de coisas ligeiras, tinha perdido a grande oportunidade de mais saber sobre a pessoa e a personalidade do nosso único Nobel... Logo dele que, num outro seu escrito que por aí encontrei, confessava que “João Basuga é um amigo do coração!”.

Um “amigo do coração” de José Saramago e eu nada conversei com ele sobre o escritor...

E a verdade é que não me perdoo por esta oportunidade perdida se bem que na realidade eu jamais pudesse imaginar que estava na presença de alguém que tão útil e importante fora a Saramago para que vencesse o 1º Prémio Nobel de Literatura português.

Quanta pena sinto hoje!...

Que João Basuga para sempre descanse em paz!

NOTA FINAL – Fica aqui a minha surpresa e o meu lamento por, nas recentes comemorações ocorridas em Lisboa (onde Saramago viveu) e Azinhaga (onde nasceu e brincou nos primeiros anos de criança) presididas pelo Presidente da República e pelo Primeiro-Ministro, assinalando a passagem do 20º aniversário da atribuição do Prémio Nobel a José Saramago, tenham esquecido Lavre, João Basuga e demais gente que tanto o acarinhou e lhe deu os muitos e valiosos conhecimentos que serviram de precioso e único alicerce à sua premiada obra Levantado do Chão. Lavre e suas gentes foram esquecidas e não mereciam.

2 comentários:

mariabesuga disse...

Deixo aqui a opinião que lhe manifestei na conversa que trocámos, para que publicamente fique...

"Aparte tudo o resto, na verdade não me parece que a meu pai importasse a retirada da referência nas edições seguintes do "Levantado do chão". Penso que ele teria entendimento para saber que mais certo é não ter tido o autor grande coisa a ver com esse pormenor. Mais certo é terem sido opções de editores... Enfim..."

e mais...

"Aliás, há até um texto publicado por um amigo jornalista e escritor/poeta, que mora em Lisboa, que fala dessa cena da retirada da dedicatória das edições seguintes. Esse meu amigo deu ao texto o nome "Carta para os olhos tristes de Maria Belmira". Maria Belmira é o meu nome e nunca os meus olhos foram tristes por tais razões embora o sejam por tantas..."

O que digo acima tem não mais que a intenção de manifestar o que eu própria sinto a respeito de toda a "polémica" a que o assunto se prestou. E, como digo, penso muito seriamente que a meu pai não faria diferença. Ele sabia bem que não eram as palavras nas primeiras páginas de cada edição que faziam todo o sentido que fez em nós termos tido Saramago à nossa mesa nem a não existência delas faria que Saramago esquecesse essa passagem pelo convívio connosco.

Bem, adiante!...
Sabe do que tenho pena?!... que não tenha ouvido de meu pai as estórias de pescarias - também das caçadas - que contava e deliciavam quem o ouvia...

Um abraço muito agradecido por ter trazido aqui esta sua memória que também é minha pelo contexto ou parte dele.

Boas pescarias! Veja se consegue um dia destes fazer o que o meu pai tanto nos prometia quando nos "zangávamos" arranjando tantos peixes que ele trazia. Prometia ele que um dia haveria de arranjar um sítio onde os peixes se deixassem apanhar já arranjadinhos e prontinhos a fritar.

Victor Azevedo disse...

Maria Besuga, muito obrigado pelo amável comentário e pela pachorra que teve em me ler!
Lembrar o seu pai é situação bem agradável, não só pelo simpático convívio, como também porque ele integra e faz parte, adicionado a vários outros episódios então vividos, que me foram particularmente gratificantes em tempos passados.
Sobre a controvérsia pela dedicatória retirada, apraz-me registar a vossa modéstia bem estampada no vosso desvalorizar do caso e que é bem reveladora da estima, amizade e também apreço sentido por Saramago e também do prazer que tiveram em recebê-lo na vossa casa. O caso é passado e só me referi a ele porque o mesmo foi o que deu origem à minha descoberta pela vossa hospitalidade do sr. João para com o escritor.
Já quanto ás conversas que eventualmente pudesse ter tido sobre pescarias, recordo que elas sobre isso foram escassas e, vamos lá, é coisa bem justificável: ele teria receio que eu, com a minha muita sabedoria na pesca do achigã, lhe secasse de peixes as represas... eheh
Grato pela sua amável colaboração Maria Besuga, aceite um abraço!