Na regular visita que costumo fazer à papelaria/tabacaria aqui do bairro – um estabelecimento sempre muito bem abastecido e actualizado, diga-se de passagem… - comprei ontem o número de Fevereiro da revista Visão/História. O assunto anunciado na capa – As Guerras Secretas de Portugal em África – chamou-me a atenção porque, sendo parte activa, ainda que forçada, na Guerra de Angola, tudo que leio, vejo e ouço na comunicação social provoca-me curiosidade e interesse. Mas estava longe de imaginar que o interesse por este número da revista fosse tanto quanto o sentido…
Na verdade e integrado nesse âmbito das “guerras secretas” é ali abordado o caso do Catanga, do ex-Congo Belga, que lutou pela sua independência do resto do território congolês e que Portugal apoiou. Que Portugal apoiou e onde eu, então integrado nas forças armadas em campanha no leste angolano, também colaborei sem querer…
Era no Congo que os guerrilheiros que lutavam pela independência de Angola tinham a maioria das suas bases e era daquele território que faziam as suas infiltrações a norte da então colónia portuguesa. Pela zona do Catanga alargavam a sua entrada mais para leste e Salazar, certamente com a batuta do experiente Franco Nogueira, seu Ministro dos Negócios Estrangeiros, viu na altura uma boa oportunidade de negociar com Tshombé, chefe dos rebeldes catangueses, um acordo de bastidores: Portugal fornecia-lhe armamento, viaturas e até aviões e dava formação ao exército de Tshombé e, este, por sua vez, impedia a manutenção das bases do MPLA e corria com eles, evitando assim a sua entrada na fronteira com Angola. E foi assim, ainda que em muito pequeno grau, nesta “jogatana” que eu colaborei…
Na data estava com o meu pelotão sediado no Cazombo, no mapa junto, publicado pela revista, ali à direita no quadrado que sai do território angolano e em determinada altura durante o ano de 1967, recebemos a ordem de serviço para irmos à fronteira com o Catanga buscar três carradas de “sacos de carvão”. Assim mesmo: “sacos de carvão” era o que “rezava” a escrita de código, não fosse sermos capturados ou liquidados e o inimigo ficasse com provas escritas da actividade subterrânea das tropas portuguesas. Isto porque as carradas referidas eram, nem mais nem menos que algumas centenas de catangueses fiéis a Tshombé que entravam em Angola para, supostamente, receberem formação das nossas tropas.
E digo supostamente porque, em boa verdade, a sua formação acabava por ser-nos útil porque os desgraçados acabavam por ser integrados nas nossas operações e, mais grave ainda, eram colocados bem na frente das nossas forças, servindo assim como “rebenta minas”, “escudos” ou “carne para canhão”. Até me recordo que, numa dessas operações e face a um ataque violento do MPLA, um dos pobres catangueses sentiu algo nas “partes baixas”, apalpou e… ficou com os tomates nas mãos… E, certamente, era uma vez um pobre e enganado catanguês….
Mas voltemos à viagem dos “sacos de carvão”: a mesma foi feita numa noite de muita chuva, connosco nos unimog encolhidos debaixo das fracas capas supostamente impermeáveis (chegamos molhadinhos até aos ossos!) e os cataguenses na caixa de carga das camionetas, que nem gado, com um oleado por cima preso aos taipais.
Viagem horrível e arriscada, de mais de 100 kms mas que, fora a molha e o cansaço, correu bem, tendo a nossa missão terminado na Gafaria, junto ao Cazombo, numa antiga leprosaria constituída por alguns pavilhões, onde a nossa “carga” ficou depositada.
Guardo ainda bem viva na memória a cena daqueles desgraçados de “cabos de enxada” em madeira ao ombro que nem espingardas, num marchar cadenciado por vozes em francês em paço rápido e miudinho, devidamente enquadrados. Mal sabiam eles o que os esperava…
Efectivamente eles não formariam exército algum para lutarem pelo Catanga… Como já disse, recebidos alguns ensinamentos, eram depois colocados na frente das nossas operações que nem “carne para canhão” e por lá muitos ficaram, mortos uns aqui, outros acolá. Então, quando se apercebiam disso, vendo onde tinham caído, só lhes restava um caminho: fugir.
Era o que os “nossos” catangueses faziam: fugiam! Um hoje, amanhã mais uns quantos e era nessa ocasião que a nossa famosa PIDE, a cuja guarda eles estavam confiados, actuava. Actuava e de que maneira?!... Radical! Como sempre a PIDE foi.
Uma bela tarde no quartel, no nosso grupo de furrieis, começou a circular “à boca pequena” um convite para ir assistir à liquidação de catangueses. Isso mesmo: liquidação! Era assim: os cantangueses tentavam fugir, eram apanhados pela PIDE que os levava para a sua prisão nas suas instalações e, de tempos a tempos, os pides faziam a “limpeza”. E, pelo menos naquela vez, com assistência formada por convites… Triste, horrível, mas verdadeiro.
Devo confessar que não fui à “sessão” dessa noite – entendi que não gostaria de ver… e foi de noite, claro, que a escuridão muito encobre, mas tive dois amigos furriéis que foram. Foram e depois contaram-me como se passou... (Não deixo aqui a identidade dos amigos por motivos óbvios…) Ambos viram, por exemplo, que os desgraçados dos condenados não saíram pelo seu pé da sede da PIDE para a viatura que os levaria à morte… Não saíram pelo seu pé, saíram a rebolar empurrados pelos violentos pontapés dos pides…
Um dos meus amigos ficou na viatura porque não teve coragem para assistir à matança mas, durante o percurso conseguiu chegar à fala com um infeliz que lhe disse em francês: “sei que vou morrer mas gostava de saber porquê?...”. O meu amigo não soube responder-lhe, claro…
O outro furriel, também meu amigo, viu tudo, tudo. Viu tudo e isso custou-lhe várias noites sem dormir, com aquelas imagens sempre na sua frente… Viu-os serem vendados, levarem tiros de G3 na cabeça e caírem na cova. Assim mesmo: à “queima-roupa”. Sensível como era e é, não descansou durante noites a fio, este amigo. E o caso não era para menos…
Eu não fui e estou satisfeito por isso. Ver horrores daqueles não é para todos os estômagos…
E eis aqui como, forçadamente, entrei nesta dura geringonça dos meandros baixos e porcos da política e dos políticos mundiais.
E, agora, passados todos estes anos, perdidas que foram imensas vidas, feridos que ficaram muitos outros milhares, “corridos” que foram pobres e abandonados mais uns bons milhares ali radicados e perdida que foi a então dita “província ultramarina” de Angola que se tornou independente e onde novas guerras e novos horrores nasceram – em Angola e não só!… -, interrogamo-nos: tudo isto, para quê?
Para quê?
Fica a interrogação…
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