É assim e não há volta a dar: A velha memória do usado septuagenário, vendo cenas actuais do dia-a-dia, continuamente vai despertar, ao seu antes adormecido arquivo encefálico, episódios passados…
Ainda há poucos dias, a propósito da saudosa série televisiva “Bonanza” recuei e recordei aqui o saudoso “Café do Ilídio” na minha velha aldeia, onde a seguíamos entusiasmos e fiéis no início da década de 60 e, agora mesmo, assistindo nas televisões e vendo e ouvindo caravanas e arruadas, ouço e observo na minha rua de cidade, como de certo acontece em muitas ruas e vielas de outras cidades, vilas e aldeias do meu país, as comitivas partidárias fazendo propaganda em potentes e modernos sistemas sonoros, procurando fazer valer as suas ideias políticas e atrair para o seu universo partidário as votações no acto eleitoral que se aproxima e, foi como que numa associação de ideias que o chip da minha velha memória foi puxado atrás e vi a velhinha Feira do Chouto de outros tempos, na idade da minha meninice e juventude, nas décadas 50 e 60 do século passado…
Sem energia electrica na aldeia, os feirantes vendedores de quinquilharias, que se deslocavam de várias localidades do país para ali procederem às suas vendas, faziam-se ouvir usando garganta e pulmões em grande gritaria, formando uma vozearia infernal.
Sobressaía dos demais o que mais alto pudesse apregoar o conteúdo da sua bancada:
- Ó freguês olhe esta enxada! Veja este sacho como é leve e útil para a sua hortinha! E esta manta, de cores sóbrias, fofa e quentinha para o próximo Inverno? E este brinquedo de madeira para o seu netinho entreter-se enquanto você cava a seara?
Por vezes a coisa azedava entre eles e havia escaramuças valentes em que A se queixava que B lhe roubava a clientela e o barulho avolumava-se, havia insultos e ofensas mútuas em larga escala, mas a feira prosseguia.
Os tempos correram ano atrás de ano e, numa determinada feira, inesperadamente, surgiram dois ou três novos feirantes que, vendo negócio fácil e rentável, de lucro garantido no Chouto, decidiram também montar barraca e banca.
Eram mais jovens que os nossos velhos conhecidos e, se bem que os produtos fossem de idêntica qualidade, os novos feirantes apresentavam-nos em banca de modos diferentes e mais atrativos, fazendo novos pregões e nova vozearia:
- Ó amigo, olhe aqui esta enxada e este sacho agora já encavados? E esta manta, listada, não de tons escuros e sombrios, mas de cores garridas e bonitas, felpuda e quentinha? E este moderno e colorido brinquedo de latão, que não se quebra facilmente, como os frágeis de madeira?
E para melhor transformação, com outra roupagem, surgiu também uma nova barraca de retratos “à la minuto” onde, ao contrário da do vizinho com o velho fundo estático e morto de fachada de casa mal desenhada, em frente da qual a família posava estática e solene, o jovem fotografo oferecia agora o cenário de um carro descapotável com duas ou três reentrâncias nas quais os clientes colocavam os rostos alegres e felizes e até mesmo um outro ainda mais animado, com um grande toiro preto onde a rapaziada como que pegava de caras, de cernelha ou de rabo o bicho, dando uma feliz ideia de força, movimento e vida.
E, para modernizar ainda mais a feira, até mesmo, não muito distante da corpulenta e já velha conhecida senhora que durante anos habitualmente ali nos vendia no habitual encalorado dia de S. Pedro um grande copo de água fresquinha, retirada do sempre húmido e bem resguardado cântaro de barro surgiu, a partir de determinado ano, a jovem mulher que, a idêntica e fresca água, adicionava uma colher de capilé, que tornava o líquido mais colorido, adocicado e mais agradável ao paladar.
- Olha o capilé fresquinho! - pregoava bem alto e zangavam-se as senhoras sentadas à sombra da fachada da padaria local, gritando e vociferando à vez, na feira que prosseguia…
Prosseguia entre gritaria de propaganda e ralhos, sempre com muita frequência de visitantes e, ao fim do segundo e último dia de festa, caída a noite e retirados que fossem os clientes para suas residências nos povoados vizinhos, a feira terminava. Terminava mas não sem que antes, nas traseiras das barracas já meio-desmontadas, iluminados por moderno petromax, os feirantes - excluindo um ou outro mais quezilento e radical… -, esquecidos de insultos, ofensas e zangas públicas do dia, em redor de um grande tacho de caldeirada de borrego com batatas, ali mesmo confeccionada, confraternizassem, saboreassem em comum a boa jantarada, bebessem uns bons tintos, fizessem juras de amizade eterna e partissem de bolsos cheios de notas e com a solene promessa de, dado o bom negócio feito, no ano seguinte tornarem pelo S. Pedro ao Chouto para realizarem nova feira, com idênticos produtos, novos e velhos, com as mesmas discussões, idênticas ofensas públicas e igual gritaria, onde se fariam melhor ouvir e mais clientela teriam e dela lucrariam, os que mais pulmão tivessem e os que melhor soubessem laurear os seus produtos.
E é assim e não há volta a dar: A velha memória do usado septuagenário, vendo cenas actuais do dia-a-dia, continuamente vai despertar, ao seu antes adormecido arquivo encefálico, episódios passados…