terça-feira, 25 de janeiro de 2022

AS ELEIÇÕES E A FEIRA DO CHOUTO

É assim e não há volta a dar: A velha memória do usado septuagenário, vendo cenas actuais do dia-a-dia, continuamente vai despertar, ao seu antes adormecido arquivo encefálico, episódios passados…

Ainda há poucos dias, a propósito da saudosa série televisiva  “Bonanza” recuei e recordei aqui o saudoso “Café do Ilídio” na minha velha aldeia, onde a seguíamos entusiasmos e fiéis no início da década de 60 e, agora mesmo, assistindo nas televisões e vendo e ouvindo caravanas e arruadas, ouço e observo na minha rua de cidade, como de certo acontece em muitas ruas e vielas de outras cidades, vilas e aldeias do meu país, as comitivas partidárias fazendo propaganda em potentes e modernos sistemas sonoros, procurando fazer valer as suas ideias políticas e atrair para o seu universo partidário as votações no acto eleitoral que se aproxima e, foi como que numa associação de ideias que o chip da  minha velha memória foi puxado atrás e vi a velhinha Feira do Chouto de outros tempos, na idade da minha meninice e juventude, nas décadas 50 e 60 do século passado…

Sem energia electrica na aldeia, os feirantes vendedores de quinquilharias, que se deslocavam de várias localidades do país para ali procederem às suas vendas, faziam-se ouvir usando garganta e pulmões em grande gritaria, formando uma vozearia infernal.


Sobressaía dos demais o que mais alto pudesse apregoar o conteúdo da sua bancada:

- Ó freguês olhe esta enxada! Veja este sacho como é leve e útil para a sua hortinha! E esta manta, de cores sóbrias, fofa e quentinha para o próximo Inverno? E este brinquedo de madeira para o seu netinho entreter-se enquanto você cava a seara?

Por vezes a coisa azedava entre eles e havia escaramuças valentes em que A se queixava que B lhe roubava a clientela e o barulho avolumava-se, havia insultos e ofensas mútuas em larga escala, mas a feira prosseguia.

Os tempos correram ano atrás de ano e, numa determinada feira, inesperadamente, surgiram dois ou três novos feirantes que, vendo negócio fácil e rentável, de lucro garantido no Chouto, decidiram também montar barraca e banca.

Eram mais jovens que os nossos velhos conhecidos e, se bem que os produtos fossem de idêntica qualidade, os novos feirantes apresentavam-nos em banca de modos diferentes e mais atrativos, fazendo novos pregões e nova vozearia:

- Ó amigo, olhe aqui esta enxada e este sacho agora já encavados? E esta manta, listada, não de tons escuros e sombrios, mas de cores garridas e bonitas, felpuda e quentinha? E este moderno e colorido brinquedo de latão, que não se quebra facilmente, como os frágeis de madeira?

E para melhor transformação, com outra roupagem, surgiu também uma nova barraca de retratos “à la minuto” onde, ao contrário da do vizinho com o velho fundo estático e morto de fachada de casa mal desenhada, em frente da qual a família posava estática e solene, o jovem fotografo oferecia agora o cenário de um carro descapotável com duas ou três reentrâncias nas quais os clientes colocavam os rostos alegres e felizes e até mesmo um outro ainda mais animado, com um grande toiro preto onde a rapaziada como que pegava de caras, de cernelha ou de rabo o bicho, dando uma feliz ideia de força, movimento e vida.

E, para modernizar ainda mais a feira, até mesmo, não muito distante da corpulenta e já velha conhecida senhora que durante anos habitualmente ali nos vendia no habitual encalorado dia de S. Pedro um grande copo de água fresquinha, retirada do sempre húmido e bem resguardado cântaro de barro surgiu, a partir de determinado ano, a jovem mulher que, a idêntica e fresca água, adicionava uma colher de capilé, que tornava o líquido mais colorido, adocicado e mais agradável ao paladar.

- Olha o capilé fresquinho! - pregoava bem alto e zangavam-se as senhoras sentadas à sombra da fachada da padaria local, gritando e vociferando à vez, na feira que prosseguia…

Prosseguia entre gritaria de propaganda e ralhos, sempre com muita frequência de visitantes e, ao fim do segundo e último dia de festa, caída a noite e retirados que fossem os clientes para suas residências nos povoados vizinhos, a feira terminava. Terminava mas não sem que antes, nas traseiras das barracas já meio-desmontadas, iluminados por moderno petromax, os feirantes - excluindo um ou outro mais quezilento e radical… -, esquecidos de insultos, ofensas e zangas públicas do dia, em redor de um grande tacho de caldeirada de borrego com batatas, ali mesmo confeccionada, confraternizassem, saboreassem em comum a boa jantarada, bebessem uns bons tintos, fizessem juras de amizade eterna e partissem de bolsos cheios de notas e com a solene promessa de, dado o bom negócio feito, no ano seguinte tornarem pelo S. Pedro ao Chouto para realizarem nova feira, com idênticos produtos, novos e velhos, com as mesmas discussões, idênticas ofensas públicas e igual gritaria, onde se fariam melhor ouvir e mais clientela teriam e dela lucrariam, os que mais pulmão tivessem e os que melhor soubessem laurear os seus produtos.

E é assim e não há volta a dar: A velha memória do usado septuagenário, vendo cenas actuais do dia-a-dia, continuamente vai despertar, ao seu antes adormecido arquivo encefálico, episódios passados…

quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

O "BONANZA" E O "CAFÉ DO ILÍDIO"

Dizem os livros e, por experiência própria confirmo que, há medida que o ser humano vai mudando as folhas no calendário da sua vida e os anos começam a carregar os ombros já envelhecidos, no dia-a-dia e quando nas curvas da vida lhe surgem imagens, músicas, fotos, objectos, etc. as suas memórias como que começam a descarregar vivências há muito passadas com elas relacionados e com pormenores rememorados aos mais pequenos detalhes que chega impressionar como estavam ocultos e esquecidos e, como que por milagre voltam à tona, vivas e frescas, como se vividas no dia anterior.

Diziam-me isso em tempos idos os antepassados e, hoje, chegada a minha hora, isso comprovo amiudadas vezes (ainda outro dia aqui escrevi como uma velha e abandonada piteira, que vi em jardim, me fez recuar aos dias de meninice na aldeia quando, juntamente com outros companheiros de aventuras, usávamos sentados nas partes mais grossas das suas folhas e improvisávamos um escorrega no pequeno declive de um barreiro da localidade) e, agora, navegando pela moderna net, “tropeçando” no genérico da música e imagem (que aí deixo) do famoso “Bonanza”, “western” norte-americano cujos episódios atenta e fielmente acompanhava quando rapaz e sempre com tão numerosa companhia em todos os serões de sábado, no início da década de 60 do século passado, no “Café do Ilídio” da nossa pequena aldeia, esquecida e abandonada pelos poderes e onde nada acontecia.

A aldeia não tinha energia electrica (ainda haveria de aguardar por esse melhoramento uns sofridos anos…) mas, nesse saudoso café, tínhamos luz e… televisão!

Herdando nos finais dos anos 50 do século passado uma propriedade rústica na freguesia, Ilídio Pratas, de seu nome próprio e apelido, homem sério, correcto, de bem com todos e que há muito é saudade, decidiu vendê-la investindo o produto dessa alienação num moderno e vistoso café que, entendia, fazia falta na aldeia naquela época com bastante actividade económica e social, reflexos da freguesia então muito povoada e com uma azafama de produção agrícola e serviços nunca antes vividos e jamais repetidos.

Um modesto café, que se distinguia da meia dúzia de tabernas bem afreguesadas porque, além de ali se beber menos vinho, estava equipado com 3 ou 4 mesas com simples bancos de pinho em seu redor e também porque no Inverno o freguês podia aquecer a garganta e o estômago com um cafezinho de cafeteira sempre em cima de velhinho fogareiro de torcida redonda, alimentado a petróleo, era o que a população da aldeia tinha para cavaquear nos fins de dia e aos domingos, na época único dia de descanso semanal.

Ilídio resolve então apostar num moderno café e, tomando de renda um espaço de antigo comércio integrado no edifício da padaria local, transforma radicalmente o seu visual.

Entre as duas portas de rua cria uma montra envidraçada, pinta de cores modernas fachada e interior do espaço e equipa o novel estabelecimento de boas e vistosas prateleiras, balcão envidraçado, mesas e cadeiras de estética moderna e bonita. Para que nada faltasse, adquire uma máquina de café da melhor marca no mercado e equipa todo o estabelecimento e até com um ponto de luz (globo) para a rua, com uma necessária instalação electrica fornecida a todo o espaço por um gerador que instala no quintal. (A foto junta foi tirada na rua, em 1962, frente à fachada do novo café, curtos anos passados sobre sua abertura.)
 

Apostado em colocar ao serviço da população algo completo e único, no café que titulou de “Central” mas que depressa se tornaria para sempre conhecido como “Café do Ilídio”, termina o seu importante investimento com a compra de um televisor, objecto jamais visto na terra, tanto mais que a televisão em Portugal nascera não há muitos anos e, sendo uma dispendiosa novidade, existia em vilas e cidades somente em lares mais abastados e nas colectividades locais, onde as pessoas acorriam para passar os serões deliciados com as notícias e programas do pequeno aparelho.

Na minha aldeia, pronto e aberto ao público, o moderno café, depressa tornou-se atracção não só dos residentes locais como até de moradores de freguesias e povoados vizinhos que o visitavam e frequentavam com agrado.

E, foi aí, no “Café do Ilídio” que “todo o mundo” masculino (o sector feminino nem em sonhos poderia frequentar cafés sem que, no mínimo, a “atrevida” fosse classificada de “estouvada”, “oferecida”, “sem vergonha”, etc…) e, homens, rapazes e mesmo crianças, aos sábados à noite enchiam até à porta a sala para assistirem, com paixão, aos episódios do “Bonanza”. E não era apenas assistência da aldeia, não… Dos Casais e povoados vizinhos, alguns a kms de distância, deslocavam-se ao Chouto apaixonados fans das aventuras da série americana com o pai Ben e os seus 3 filhos, Adam, Hoss e Little Joe que, ajudando o seu amigo Xerife na cidade, destemidos, impunham a ordem, sempre privilegiando os valores morais, as causa justas e a verdade.

Western de sucesso ímpar em todo o mundo, a força e a moral de que pai e filhos eram portadores, vibrava e forçava à assistência desses muitos episódios e, este hoje septuagenário, que bastas vezes beneficia do velho “ficheiro” craniano quando, no percurso dos dias, “tropeça” em algo que a tempos passados o faz recuar, bem recorda o enorme prazer e entusiasmo, que nem no exercício de uma autêntica religião, o levava irresistivelmente nos serões de sábado a juntar-se aos seus conterrâneos nas noites escuras da sua esquecida e isolada aldeia, frente a um televisor alimentado de corrente electrica vinda, como que por milagre, de um pequeno, portátil e tão prestável gerador.

Tão reais, tão apaixonantes, tão viciantes e gostosos foram esses serões do “Bonanza” que ainda hoje são bem recordados e, de certo, não só por este usado escriba, autor destas linhas, como por muitos dos seus companheiros de então, entusiastas apaixonados de uma boa e viril coboiada que nunca perdiam no sempre lembrado “Café do Ilídio”.